segunda-feira, 16 de setembro de 2013


Resposta ao Professor Mário Maestri: A Frente Popular chilena e a posição dos revolucionários

Publicamos a correspondência que nos foi enviada pelo Professor de História Mário Maestri e logo abaixo a resposta da LBI sobre a caracterização do governo da UP presidido por Salvador Allende, assim como nossa avaliação programática acerca do papel do MIR diante do golpe pinochetista

"Prezados companheiros: acompanho com satisfação o blog da LBI, importante referência de discussão na esquerda revolucionária. Reconheço a dificuldade para um grupo pequeno de realizar um acompanhamento da política internacional e nacional, sem incorrer em lapsos não raro nascidos da desinformação. Em verdade, ao menos pessoalmente, vejo com desconfiança o pronunciamento sobre todos e sobre tudo, mesmo a partir das melhores intenções, que em geral praticamos, no passado ou no presente.  Acabo de ler a postagem sobre os 40 anos da ofensiva contra-revolucionária no Chile. Duas questões, uma política, a outra objetiva.

1) A apresentação da conformação da Unidade Popular praticamente como um ato consciente para preparar a contra-revolução não tem nenhuma pertinência. “A proposta da Esta foi a função política que veio a ter o governo da UP: organizar a derrota pacífica dos trabalhadores e, portanto, pavimentar o caminho para o seu esmagamento sangrento.” É quase propor que Salvador Allende se elegeu para se encerrar em La Moneda e se suicidar, quase três anos mais tarde! Argumento já invalidade pelo próprio fato de que a vitória da Unidad Popular ensejou uma enorme radicalização das classes trabalhadoras que superou fortemente seu programa de colaboração de classe, que não podia levar a outro resultado.

2) Não há qualquer base objetiva na proposta de que o MIR tivesse dezesseis mil homens armados!  “Esta medida estava dirigida às fábricas ocupadas e aos partidos de esquerda, em especial o MIR (Movimento de Esquerda Revolucionário) que possuía um contingente de mais de 16 mil homens armados, que compunham a própria UP.”  Se tivéssemos tido quinhentos, prezados companheiros, a história teria sido diversa.  Não tínhamos muito mais do que alguns fuzis modernos, revólveres velhos [alguns valiosas peças de museus], e granadas artesanais de trotil [de pavio!], que chamávamos fifty-fifty, pois nos melhores do casos, explodia uma sobre duas! Os poucos fuzis, a direção guardou consigo; quem quis pelear, o fez com o que tinha, que não era quase nada!  No frigir dos ovos, o guevarismo-fidelismo mostrou que sequer servia para defrontar uma tentativa de golpe, nas suas primeiras duas ou três horas.  Em verdade, às 14:00 do dia 11, a direção do MIR mandou sua militância recuar, para se preservar para a “guerra dura y prolongada”!

Saudações fraternais
Mário Maestri"
11 de setembro de 2013
                                                                                                               

Estimado Camarada Mário Maestri,

Desde já agradecemos por considerar o Blog da LBI uma referência de discussão na esquerda revolucionária. Por conta das dificuldades que você mesmo pontuou – e que são reais para uma liga de militantes leninistas – não pudemos lhe responder antes. Apesar de respeitar vossa opinião, mantemos as caracterizações expostas no artigo sobre os 40 anos do golpe pinochetista. De qualquer forma, estamos sempre abertos ao debate programático para fortalecer as posições do marxismo revolucionário e ajustar nossa política com vista à construção do partido leninista. Por esta razão, expomos aqui rapidamente nossa compreensão sobre a tragédia chilena. Em primeiro lugar, o fato da vitória da UP gerar amplas expectativas no movimento de massas e inclusive a radicalização da luta de classes no Chile de forma nenhuma significa que a ascensão de Allende à presidência significou por parte das direções do PS e do PC a ruptura com a política de colaboração de classes de ambos, ao contrário, a chegada da UP ao Palácio de La Moneda aprofundou sua orientação de contenção do ascenso operário e popular. O suicídio de Allende se insere justamente neste quadro de impotência política, já que o “presidente-companheiro” entrou para a história como mártir enquanto o PC e PS não chamaram a resistência ao golpe contrarrevolucionário. Neste sentido, a frente popular pavimentou conscientemente a reação fascista comandada por Pinochet, ou seja, como você mesmo é forçado a reconhecer, a política da UP “não poderia levar a outro resultado”!

O governo instaurado pela Unidade Popular (UP) em 1970, encabeçado por Allende, correspondeu às características clássicas de uma frente popular, onde a burguesia em crise extrema e sob a pressão do ascenso popular faz concessões e entrega o poder a partidos reformistas de massas para que estes controlem o movimento operário nos marcos do regime político burguês. A Unidade Popular era formada pelo PS, PC, Partido Radical e vários partidos raquíticos da pequena burguesia (MAPU, API, PSD), uma frente popular entre partidos operários e partidos burgueses “progressistas” minúsculos. O predomínio da plataforma política defendida pelo PC e o PS - adoção da via pacífica para a construção do socialismo e o respeito incondicional à constitucionalidade burguesa – permitiu a ampliação das alianças políticas com essas sombras da burguesia e transformou sua estratégia inicial (adoção da via pacífica para o socialismo) em camisa-de-força sobre o movimento revolucionário desencadeado independente das limitações e objetivos políticos da UP.

O exemplo da frente popular chilena, onde o Partido Radical e setores ultraminoritários da DC, no caso, o MAPU, integram a UP, encaixa integralmente na caracterização de Trotsky sobre a Espanha na década de 30: “O fato mais surpreendente politicamente é que no caso da frente popular na Espanha nem sequer há paralelo de forças: o lugar da burguesia está ocupado pela sua sombra. Através dos stalinistas, dos socialistas e dos anarquistas, a burguesia espanhola subordinou o proletariado sob seu controle sem ao menos ter o trabalho de participar da Frente Popular... Porém, graças a seus aliados socialistas, stalinistas e anarquistas, esses fantasmas políticos jogaram na revolução um papel decisivo. Como? Simplesmente, encarnando o princípio da ‘revolução democrática’, isto é, da inviolabilidade da propriedade privada" (Lições da Espanha, Última advertência, 1937).

A UP entrou em cena quando as massas estavam em uma mobilização ascendente que ameaçava destruir o Estado burguês. O aniquilamento eleitoral da direita (Partido Nacional), a derrota do democrata-cristão Eduardo Frei — em condições de divisão da burguesia — era uma expressão aberta de que se estava na ordem do dia para as massas chilenas a luta por construir um governo operário e camponês. Para sair dessa encruzilhada, que a própria evolução da luta de classes impunha, os partidos frentepopulistas se aliaram com a burguesia, o exército e o clero com o objetivo de preservar a ordem burguesa. Essa tarefa era impossível sem desorganizar as massas e derrotá-las. Esta foi a função política que veio a ter o governo da UP: organizar a derrota pacífica dos trabalhadores e, portanto, pavimentar o caminho para o seu esmagamento sangrento. A derrota das massas chilenas não foi um subproduto da política reformista ou conciliadora de Allende, mas a realização plena dos próprios objetivos fixados pela UP.

Os discursos de Allende sintetizam bem seu programa de construir a “via pacífica para o socialismo” no Chile, em uma negativa clara de marchar pelo caminho da revolução proletária. Em sua primeira mensagem ao Congresso Nacional, o presidente eleito pela UP expressa essa concepção em toda sua plenitude: “As circunstâncias entre Rússia de 1917 e as do Chile de hoje são muito diferentes... Nosso modelo revolucionário, o método pluralista, foi antecipado por teóricos marxistas clássicos porém nunca foi posto em prática antes. O Chile é hoje a primeira nação no mundo que está pondo em prática o segundo modelo de transição a uma sociedade socialista... Os céticos e os profetas da ruína dirão que isto é impossível. Dirão que um parlamento que serviu às classes dirigentes com tanta eficácia não pode transformar-se em um Parlamento do Povo chileno. Ainda mais, declararam enfaticamente que as Forças Armadas e o Corpo de Carabineiros não consentiriam em garantir a vontade do povo se este decidisse o estabelecimento do socialismo em nosso país... Já que o Congresso Nacional está baseado no voto do povo, não existe nada em sua natureza que impeça que se transforme para voltar-se, de fato, a ser um Parlamento do Povo. As Forças Armadas e os Carabineiros, fiéis a seu dever e a sua tradição não intervirão no processo político que corresponde com a vontade do povo..." (Dircurso de Allende em sua primeira mensagem ao Congresso, 1970).

No programa da UP, a conquista do poder deveria ocorrer a partir de mecanismos institucionais existentes através de um processo gradual, progressivo e pacífico, ou seja, rechaçava a tarefa de armar as massas para pôr abaixo o Estado burguês em um enfrentamento direto com a burguesia nacional e o imperialismo. As reacionárias instituições e estruturas capitalistas deveriam ser transformadas paulatinamente sem a necessidade de organismos de poder popular e soviéticos que superassem e destruíssem a estrutura jurídica, política e econômica que mantinha de pé o regime burguês. Essa utopia reacionária pregava que a ordem capitalista deveria ser transformada a partir da institucionalidade montada para mantê-la, a passagem do poder de uma classe para outra deveria ocorrer sem que se abrisse um processo revolucionário para sua conquista. Justamente por essa razão, os principais líderes da UP tentavam esfriar a euforia popular e fixar limites ao processo revolucionário aberto contra a sua vontade, usando uma fraseologia esquerdista para justificar sua política criminosa: "É necessário ter uma clara consciência de que o programa da UP não é um programa socialista, está destinado a preparar o país e o povo - desenvolvendo sua educação e sua consciência - para entrar em uma etapa socialista. Definiria a etapa atual como pré-socialista" (Entrevista de Altamirano, dirigente do PS ao Le Monde de fevereiro de 1971).

Buscando um compromisso explícito da UP para arrancar-lhe garantias de respeito à ordem capitalista, a DC redatou um documento público onde enumerava suas exigências: "Queremos um estado de direito. Isto requer a exigência de um regime político em que a autoridade seja exclusivamente exercida pelos órgãos competentes: executivo, legislativo e judiciário, sem a intervenção de outros órgãos ‘de fato’ que se reivindiquem de um suposto poder popular. Queremos que as FFAA e os corpos de Carabineiros continuem sendo uma garantia de nosso sistema democrático, o que significa que sejam respeitadas as estruturas orgânicas e hierárquicas das Forças Armadas, Carabineiros etc." (Documento da DC, 24 de setembro de 1970). Não havia uma forma mais clara de exigir a submissão do governo da frente popular às necessidades do grande capital. A resposta de Allende é criminosa e subordina completamente seu ‘governo popular’ às exigências da grande burguesia chilena e do imperialismo: "Devo afirmar que sou um defensor intransigente das prerrogativas do chefe de Estado. Afirmo, que a UP não terá nenhum direito sobre a nomeação do alto comando militar pois é uma prerrogativa do Presidente da República e preservarei zelosamente minhas atribuições constitucionais", concluindo "que todas as transformações políticas, econômicas e sociais se realizarão a partir da ordem jurídica atual e segundo o Estado de direito" (Resposta de Allende a DC, setembro de 1970)

Sobre as forças armadas, o Estatuto de Garantias Democráticas delibera que "a força pública está única e exclusivamente constituída pelas forças armadas e os corpos de carabineiros, instituições essencialmente profissionais, hierárquicas, disciplinadas e não deliberativas. O recrutamento de novos efetivos das FFAA e dos carabineiros está reservado às escolas superiores dessas instituições", preservando integralmente o aparato repressivo que anos mais tarde iria servir para dizimar a esquerda chilena. O Estatuto de Garantias Democráticas, na verdade, um pacto de garantia das instituições burguesas e da inviolabilidade da propriedade privada, selou um acordo histórico entre a UP, a grande burguesia nacional e o imperialismo contra qualquer tentativa das massas de marchar rumo à destruição do Estado burguês. O estabelecimento desse acordo demonstrou em toda sua abrangência que a UP rompia não só os seus últimos vínculos proletários, mas com todo o caráter anti-imperialista que até então proclamava, porque a partir desse momento expressa claramente seu objetivo de não se apoiar no movimento de massas contra as instituições e o regime político reacionário de um estado semicolonial, ao contrário, firma um compromisso aberto com as forças comprometidas com a ordem capitalista existente contra o ascenso de massas.

Com relação ao MIR, você alega que se este agrupamento tivesse 16 mil homens armados a história teria sido diferente. Podemos ter nos equivocado no número exato, entretanto as colunas militantes do MIR nas marchas em apoio a Allende (Ver documentário A Batalha do Chile) eram gigantescas e as informações foram nos repassadas por camaradas que viveram os acontecimentos na época. Ainda assim, a política do MIR de pressionar Allende à “esquerda” sem romper com a UP, já que inclusive compunha o famoso GAP, não leva a conclusão que se tivesse maior poderio militar os rumos dos acontecimentos se alterariam substancialmente. Apesar da nossa crítica marxista ao MIR, todo o nosso respeito e simpatia estão com os companheiros desta organização política que tombaram na luta para não serem assassinados pela ditadura pinhochetista, como vemos no documentário “Rua Santa Fé”, que relata o assassinato pelo exército de Miguel Enriquez, secretário-geral do MIR. A luta de classes indicava o contrário, como você mesmo se vê forçado a reconhecer que “No frigir dos ovos, o guevarismo-fidelismo mostrou que sequer servia para defrontar uma tentativa de golpe, nas suas primeiras duas ou três horas. Em verdade, às 14:00 do dia 11, a direção do MIR mandou sua militância recuar, para se preservar para a ‘guerra dura y prolongada’”.

Lembremos que Allende promulgou uma lei que dava poderes ao Exército para fazer apreensões de armas sem aviso prévio. Esta medida estava dirigida às fábricas ocupadas e aos partidos de esquerda, em especial o MIR que possuía um contingente de milhares de militantes e simpatizantes armados, que compunham a própria UP. Allende “redigiu uma lei que concedia às Forças Armadas o direito de controlar o armamento dos civis. Esta lei, propiciada pelo governo, está respaldada pelos uniformizados e estes, sem dúvida, a aplicaram à risca” (Clarín, 07/09/72). Ao mesmo tempo, o governo da UP exigia o desarmamento dos cordões industriais e em meio à maior crise militar de seu governo, nomeou Augusto Pinochet como chefe das FFAA.

O Governo da UP reprimiu o movimento operário, as ocupações de fábricas, as invasões de terras e as mobilizações antifascistas organizadas pelas juntas de abastecimento e preços (JAP’s), os cordões industriais e os comandos comunais no campo e na cidade, já que esses organismos de base fugiam muitas vezes do controle da UP. Para se ter uma dimensão desses embriões de poder proletário, os cordões industriais chegaram a agrupar mais de 100 mil trabalhadores somente em Santiago, tendo relativa independência política do PC e da CUT e, muitas vezes, sendo simpáticos à plataforma do MIR. O MIR era um grupo foquista pró-castrista que criticava pontualmente a UP, mas se negava a denunciar de conjunto sua política de colaboração de classes, limitando-se a declarações diplomáticas como: "apesar de não concordarmos com cada passo da Unidade Popular, apesar de termos diferenças com aspectos da sua política, isso não significa que tenhamos que romper definitivamente com a UP" (Ponto Final, 09/11/71). No conjunto, os organismos de base não se constituíram apenas em instrumentos políticos imediatos para solucionar, na perspectiva dos trabalhadores, os problemas da produção-distribuição-consumo-transporte ou de habitação-saúde-escola. Assumiram, na verdade, feições de um poder popular, ainda que embrionariamente. A sua evolução - até se configurarem enquanto um poder dual, paralelo à institucionalidade burguesa - foi barrada conscientemente pela política dos partidos da UP e pela conduta inconsequente do MIR.

A cúpula da coalizão governista apoiava-se nestes organismos de base exclusivamente para pressionar a direita e buscar uma solução negociada para a crise, conferindo-lhe funções de colaboração com o governo. Ademais, o próprio Allende e o PC se manifestam contra os organismos de base, taxando-os de esquerdistas e desestabilizadores do quadro jurídico-político e institucional. Dado o peso e a influência da UP no movimento operário e popular (CUT e sindicatos) e a ausência de um partido revolucionário que dirigisse esses setores mais conscientes, a vanguarda classista que se aglutinava em torno dos organismos de base não conseguiu se contrapor frontalmente ao governo e às instituições do Estado burguês que, naquele momento, eram apresentadas pelo PC e o PS como estando a serviço dos interesses dos explorados. Em consequência dessa política criminosa, um dos momentos de maior radicalização das massas foi desprezado e seu ímpeto contido, como forma de garantir a estratégia política reformista. Alçada ao poder para conter e desviar o avanço das massas trabalhadoras do campo e da cidade, criando a ilusão de uma "via pacífica para o socialismo", a frente popular foi derrubada num momento em que a classe dominante e o imperialismo conseguiram organizar a contra-ofensiva auxiliados pela política da UP de desarmar o proletariado e pactuar com os setores "constitucionalistas" da burguesia (DC) e das FFAA. Como bem sintetizou Trotsky: "a política conciliadora das Frentes Populares condena a classe operária à impotência e abre caminho para o fascismo" (Programa de Transição, 1938).

A burguesia, com as bases fundamentais da economia em suas mãos e o aparato repressivo intacto, teve tempo para esperar os resultados desmoralizantes da política de Unidade Popular. A medida que os capitalistas instalavam o caos econômico no país, organizavam lockoutes e mobilizações da classe média enfurecida com o desabastecimento, a UP capitulava cada vez mais, reivindicando a entrada da DC no governo. Por outro lado, o governo perseguia e isolava a vanguarda classista e as ações dos cordões industriais, desmoralizando a classe operária e trazendo divisão e confusão às suas fileiras. Os Carabineiros chegaram, por ordem direta de Allende, a assassinar 06 camponeses que ocupavam terras no interior do país, ligados à União Revolucionária Camponesa, fração sindical rural do MIR. Apesar de sua influência sobre os setores mais radicais da classe trabalhadora chilena, a estratégia do MIR não estava a serviço de desenvolver a organização dos cordões industriais e proporcionar-lhes uma política de autodefesa e armas para enfrentar o golpe. Sua estratégia de guerrilha de adotar a perspectiva de guerra popular prolongada visava substituir o proletariado e seus organismos por heroicos combatentes, o que desgraçadamente pavimentou o extermínio do agrupamento foquista pelo chacal Pinochet!

Saudações Revolucionárias,
André Fava, pela Direção Nacional da LBI
16 de setembro de 2013.