Há 96 anos da tomada do
poder pelo Partido Bolchevique: Abstrair as lições de Outubro para retomar o
combate da Revolução Socialista mundial
Há exatamente 96 anos,
no dia 07 de novembro de 1917 (pelo calendário gregoriano e 25 de outubro pelo
juliano) o partido Bolchevique sob a direção do grande chefe Lenin tomava o
poder de estado na Rússia. A história do século XX não pode ser compreendida
sem se ter em conta a enorme influência da revolução socialista de Outubro de
1917 na luta dos trabalhadores e dos povos oprimidos de todo o mundo contra a
exploração e opressão imperialistas. Falem o que quiserem falar os
“historiadores” e “jornalistas” detratores da revolução a soldo do capital e
todos os renegados “comunistas” e revisionistas do Leninismo arrependidos que,
em nome de “lançar um novo olhar crítico” sobre os fatos, os deformam
grotescamente, não há como ocultar que os principais acontecimentos que
marcaram o último século estão de alguma maneira relacionados à perspectiva
histórica da revolução socialista mundial que se abriu com a vitória
bolchevique. De forma inédita, ocorreu uma experiência genuinamente proletária
de expropriação da propriedade privada que, em uma vasta extensão territorial,
assumiu uma dimensão e duração infinitamente maior que a Comuna de Paris. Até
então, a primeira tentativa de “assalto ao céu”, como afirmou Marx na época, e
instauração de um governo proletário, durou apenas 72 dias. Por sua vez, os
sovietes, os órgãos de democracia operária criados sobre a base de estruturas
piramidais de conselhos populares nascidos em meio ao “ensaio geral” de 1905,
apresentaram um formato bem mais aprimorado de Estado operário. E, o que
assumiu uma importância decisiva: também pela primeira vez na história da
humanidade, a classe operária, através de sua vanguarda de quadros comunistas
forjados sob as experiências das revoluções de 1905 e de fevereiro de 1917,
converteu-se em classe para si e organizou conscientemente a tomada do poder.
Assim, por maior que sejam os esforços em contrário de todos os seus inimigos
nestes 96 anos, as lições da primeira revolução proletária da etapa
imperialista do capitalismo não podem ser esquecidas pelas novas gerações de
revolucionários. Na academia, na mídia e nos partidos da esquerda revisionistas
reina neste momento uma verdadeira cruzada antibolchevique por exterminar ou
pelo menos demonizar todas as referências do grande triunfo proletário de 1917,
para confundir os lutadores de hoje e impedi-los de organizar uma saída
revolucionária diante das explosivas contradições da dominação imperialista.
Não por acaso os charlatães do Marxismo tentam “vender” o conceito de uma
suposta revolução como sendo levantes “democráticos” organizados pelo
imperialismo contra “ditaduras” nacionalistas.
Se antes a socialdemocracia, o stalinismo e o “marxismo acadêmico” trataram, cada um a seu modo, de prostituir o legado de Outubro, após a restauração do capitalismo na URSS, a ampla frente dos antibolcheviques se sentiu mais à vontade para requentar antigas calúnias que anteriormente só pertenciam ao desacreditado entulho “literário” da direita reacionária. Um extenso e heterogêneo arco faz em comum à propaganda de que não tem mais sentido algum no século XXI a defesa do partido de vanguarda comunista da classe operária, da revolução violenta, da tomada de poder e da ditadura do proletariado. Esta crença contrarrevolucionária ganhou força e se alastrou amplamente após a queda do Muro de Berlim, a destruição dos Estados operários deformados do Leste europeu e da URSS que, além de re-implantar a propriedade privada nessa parte do planeta onde a burguesia já havia sido expropriada, permitiu ao capital intensificar a exploração e opressão sobre as massas trabalhadoras em todo o mundo. A extremada degeneração do modo de produção capitalista, com a crescente miséria das massas e a concentração da riqueza social nas mãos um punhado de megacorporações coloca, na ordem do dia, a necessidade da luta de classe do proletariado reencontrar sua estratégia socialista como única via para arrancar a humanidade da barbárie imperialista. Ainda que hoje as condições estejam bastante adversas aos trabalhadores, em essência a luta de classes continua a mesma luta do proletariado contra a exploração e o domínio de classe dos capitalistas. Portanto, o resgate do legado teórico e político de Lenin e do bolchevismo como parte das lições do processo revolucionário de Fevereiro a Outubro de 1917 é de fundamental importância. Nesse aspecto destaca-se o método leninista de análise da luta de classes e de construção do partido como instrumento de ação política para a transformação revolucionária da sociedade.
Os fatores históricos e
sociais que fizeram possível a Revolução de Fevereiro de 1917, prólogo da
Revolução de Outubro dirigida pelo Partido Bolchevique oito meses mais tarde,
têm suas raízes fincadas nas profundas contradições da Rússia czarista, um
típico país camponês que se incorporou à cadeia da economia capitalista mundial
somente no final do século XIX, quando os países capitalistas mais
desenvolvidos da Europa e da América do Norte já haviam ingressado na fase
imperialista. O desenvolvimento
capitalista da Rússia foi favorecido por investimentos de capitais originários
da França, Inglaterra e Alemanha, que afluíram massivamente ao império dos
czares entre 1880 e 1900, possibilitando uma rápida transformação na economia e
na sociedade russa. Entretanto, o vigoroso desenvolvimento industrial que
concentrou grandes fábricas nos principais centros urbanos, se fez de tal forma
que as mais avançadas estruturas e técnicas do capitalismo coexistiam e
completavam-se com o atraso econômico no campo, onde ainda imperavam relações
semifeudais (a servidão feudal só foi abolida em 1861) e a concentração de
terras nas mãos de um punhado de latifundiários. Dessa forma, manifestavam-se
na Rússia todas as contradições características dos países capitalistas de
desenvolvimento desigual e combinado. No início do século XX a Rússia possuía a
maior população da Europa, 174 milhões de habitantes. Destes, cerca de 80%
ainda viviam no campo. A maior parte das terras estava em mãos de uma minoria
de 30.000 latifundiários, enquanto milhões de camponeses pobres viviam
miseravelmente em pequenas propriedades e outros tantos não possuíam nenhuma
terra, vendo-se obrigados a trabalhar como operários agrícolas nas terras dos
latifundiários. Esta situação condenava os camponeses à pobreza, à miséria e à
fome, conduzindo a revoltas periódicas que eram violentamente reprimidas pela
autocracia czarista.
A dissolução das
relações feudais no campo e o desenvolvimento da grande indústria lançaram uma
parcela significativa dos camponeses nos centros urbanos, dando origem a um
jovem e combativo proletariado fabril de aproximadamente 10 milhões de
operários; um proletariado muito concentrado (as fábricas com mais de 1.000
operários empregavam 41,4% da classe operária russa) que, tendo rompido
bruscamente com suas velhas relações sociais, estava aberto para as ideias
revolucionárias mais avançadas. A opressão que a
autocracia czarista exercia sobre uma multidão de povos e nações que
constituíam o império russo era outro fator que alimentava as contradições da
sociedade. As lutas de libertação nacional de polacos, finlandeses, ucranianos,
letões, lituanos, muçulmanos, etc., que sofriam a opressão nacional nas mãos da
casta dominante grã-russa, tiveram um papel muito importante no processo
revolucionário russo e acertaram golpes mortais contra a monarquia czarista. O atraso econômico
engendrava também o atraso político. Em 1917 a Rússia ainda era uma monarquia
absolutista. O Estado czarista era um poder político semifeudal, organizado
fora dos padrões burocráticos dos Estados burgueses modernos (recrutamento dos
funcionários aberto a todas as classes sociais; ideologia do Estado como
autoproclamado defensor do interesse geral de toda a população e situado acima
dos interesses das classes e dos indivíduos; direito baseado na igualdade
jurídica formal entre todos os cidadãos, etc.). Era, portanto, um Estado
controlado quase que exclusivamente por burocratas provenientes ou ligados à
aristocracia nobiliárquica e em que os principais cargos do aparelho estatal
eram vedados aos membros da burguesia. Num mundo dominado por nações
capitalistas, a permanência de um aparelho de Estado feudal sobre uma estrutura
econômica já baseada em relações de produção capitalistas, era cada vez mais
inviável. Todas as classes da sociedade burguesa se colocavam objetivamente em
oposição ao regime czarista com sua burocracia estatal e a aristocracia feudal
que lhe dava sustentação.
A existência da
autocracia czarista obrigava a burguesia a colocar-se em oposição ao regime
visando tomar em suas mãos a direção do Estado e da economia. Com esse objetivo
já se organizara desde 1905 no partido democrata-constitucionalista, principal
partido burguês de oposição ao czarismo, cuja sigla KDT o tornou mais conhecido
como partido cadete. Todavia, na etapa histórica do capitalismo imperialista, a
burguesia russa, como toda a classe burguesa de qualquer país de
desenvolvimento capitalista tardio, já era politicamente incapaz de colocar-se
à frente das massas para realizar mesmo as tarefas históricas clássicas das
revoluções burguesas como o fim dos privilégios feudais, a extinção do
latifúndio com a distribuição das terras entre os camponeses pobres e a
abolição do absolutismo. Dessa forma, já na revolução de 1905 a burguesia, que
inicialmente apoiou a mobilização das massas contra a autocracia czarista, pretendendo
utilizá-las para forçar o regime czarista a promover mudanças que permitissem
sua participação como força social majoritária na direção do Estado, logo se
jogou nos braços da reação quando os operários, de armas nas mãos, levantaram
suas próprias reivindicações (jornada de 8 horas, aumento dos salários e
ocupações de fábricas).
De sua parte, a classe
operária russa, antes mesmo de 1905, já dispunha de sua própria organização
política, o POSDR, fundado em 1898. As divergências que dividiram os marxistas
russos entre bolcheviques e mencheviques começaram no II congresso POSDR, em
julho de 1903, em torno da definição do conceito de militante e do tipo de
organização de que necessitava o movimento operário para lutar contra o
czarismo e pela revolução. Lenin, à frente dos bolcheviques, definia como
militante do partido “todo aquele que aceita seu programa e apoia o partido
tanto materialmente como por meio da participação pessoal em uma de suas
organizações”. A concepção leninista de partido propunha uma organização de
combate, formada principalmente por revolucionários profissionais, forjada no
centralismo democrático, na hierarquia e na disciplina consciente de seus
membros; constituída por quadros preparados por uma longa aprendizagem. Uma
organização que pudesse se apresentar com fisionomia própria diante das
tendências pequeno-burguesas; preservar a vanguarda consciente da degeneração
política e ideológica e preparar, com todos os detalhes da arte revolucionária,
a vitória da revolução proletária. Em oposição aos leninistas, os mencheviques,
liderados por Martov, consideram membro do partido “todo aquele que aceita seu
programa, paga suas cotizações e coopera regularmente no trabalho do partido,
sob a direção de uma de suas organizações”. O tipo de organização proposta
pelos mencheviques baseava-se no princípio da “ampla democracia”, refletindo a
influência das concepções pequeno-burguesas no movimento operário russo.
Para muitos
antibolcheviques de hoje todo mal emana do “centralismo democrático” (alguns
revisionistas contemporâneos até tentam escamotear sua aversão substituindo a
expressão por democracia centralista), que até se justificaria para a luta
clandestina contra o czarismo, mas seria completamente desnecessário e até
nocivo nas sociedades “democráticas” atuais. De fato, o centralismo leninista
não foi pensado, principalmente e antes de tudo, para as condições de
clandestinidade sob a tirania czarista (que seguramente influíram na
necessidade de centralização da organização leninista), mas por razões
políticas fundamentadas no caráter centralizado da própria dominação do capital
e seu Estado. Sem uma centralização, sem uma vontade única, o proletariado não
poderá levar adiante a luta revolucionária, que exige vencer um Estado
centralizado.
Tanto Engels em seu
“Sobre a autoridade” quanto Lenin em seu “Esquerdismo, doença infantil do
comunismo” destacam a disciplina do proletariado como uma das condições para a
vitória sobre a burguesia. Isto é reconhecido por qualquer trabalhador que
tenha participado de uma greve. Acatar as decisões democraticamente tomadas
majoritariamente por uma assembleia é uma das condições para ter êxito sobre a
burguesia e não por acaso, o seu inverso, o desacato, a supressão da democracia
operária e a não execução de suas deliberações tomadas nas assembleias
proletárias é a política dos burocratas traidores que fazem o jogo do inimigo
de classe. Muitos poderão reconhecer que a disciplina é justa quando praticada
de baixo para cima, mas o partido bolchevique organizava-se de forma
hierárquica de cima para baixo e aí estaria a causa da burocratização. De fato,
as coisas se processam de forma diferente entre as organizações de massas
(sindicatos, associações, etc.) e as organizações de vanguarda (de caráter
partidário). Lenin queria construir com os setores mais avançados do
proletariado o Estado maior da revolução social e, por isto, combatia a ideia
anarquista de que o partido teria leis próprias independentes da luta de
classes pelo poder e da influência da ideologia burguesa sobre as distintas
classes sociais e sobre os próprios militantes. Até que o comunismo não
dissolva as classes sociais, a lei principal que se manifesta sempre quando se
luta pelo poder estatal, é a existência de dirigentes e dirigidos, daqueles que
dão ordens e aqueles que a seguem, hierarquia que no partido é definida pelo
grau de dedicação e abnegação à luta revolucionária do proletariado. Exatamente
por isto, em um partido dinâmico, muitos dirigentes que têm sua militância
debilitada por quebra ideológica ou erros políticos de direção são
dialeticamente ultrapassados pelos que antes eram dirigidos. Todavia, querer
vencer romanticamente esta divisão elementar entre vanguarda e retaguarda com
ficções horizontalistas é pura demagogia ou utopia libertária. Significa
subordinar a parte mais avançada a mais atrasada, arriscando o caráter
revolucionário do partido.
Sobre o que consiste a
autoridade dirigente e os riscos do burocratismo, Lenin argumenta: “Toda a arte
de uma organização conspirativa consiste em saber utilizar tudo e todos, em
‘dar trabalho a todos e a cada um’, conservando ao mesmo tempo a direção de
todo o movimento, e isto entenda-se, não pela força do poder, mas pela força da
autoridade, por energia, maior experiência, amplidão de cultura, habilidade.
Esta observação está relacionada com uma contestação possível e comum: a de que
uma centralização rigorosa possa destruir um trabalho com excessiva facilidade,
se casualmente no centro se encontre uma pessoa incapaz, possuidora de imenso
poder. É claro que isso é possível, mas o remédio contra isso não pode ser o
princípio eleitoral e a descentralização, absolutamente inadmissíveis e
inclusive nocivas ao trabalho revolucionário sob a autocracia. O remédio contra
isso não se encontra em nenhum estatuto. Somente podem nos fornecer parâmetros
‘críticas fraternas’ começando com resoluções de todos os grupos e subgrupos,
seguidas de conclamações ao Órgão Central e Comitê Central e terminando, ‘na
pior das hipóteses’, com a destituição da direção completamente incapaz. O
comitê deve esforçar-se para realizar a mais completa divisão de trabalho
possível, lembrando-se que para os vários aspectos do trabalho revolucionário
são necessárias diferentes capacidades. Algumas vezes, pessoas completamente
incapazes como organizadoras podem ser excelentes agitadoras, ou outras
incapazes para uma severíssima disciplina conspirativa, ser excelentes
propagandistas, etc. (Carta a um Camarada, setembro de 1902).
As divergências entre
bolcheviques e mencheviques aprofundaram-se a partir de 1905 em torno da
definição do caráter da revolução russa e do papel das classes sociais no
processo revolucionário. Enquanto os mencheviques defendiam que caberia à
burguesia a direção política da sociedade após a derrota do czarismo, os
bolcheviques sustentavam que o novo governo revolucionário só podia ser produto
de uma aliança do proletariado com o campesinato. A experiência revolucionária
de 1905 despertou para a vida política até os setores mais atrasados das
massas, como o numeroso campesinato que, pouco propenso a constituir
organizações políticas estáveis devido à dispersão imposta pelas suas próprias
condições sociais de existência, encontrou um canal de expressão no partido da
pequena-burguesia urbana, o partido socialista-revolucionário. A situação
revolucionária de 1905, após a derrota na guerra com o Japão (1904-1905), foi
um claro sinal, por um lado, da incapacidade do Estado russo manter uma posição
de potência internacional e, por outro, de que a Rússia era o Estado europeu
mais vulnerável às lutas populares e onde estas estavam mais avançadas da
época. A repressão sangrenta do movimento revolucionário de 1905 permitiu
salvaguardar o poder de Estado nas mãos do Czar por mais 12 anos. Mas provocou
a perda de um dos pilares fundamentais de sustentação do Estado, ou seja, a
capacidade de controle ideológico e a sua legitimidade como poder político
perante as massas exploradas. Desde o Domingo Sangrento, o Czar perdeu sua
feição sagrada diante das massas que passaram a vê-lo como um inimigo de
classe. Entre 1905 e 1917, o Estado czarista se manteve fundamentalmente sobre
o aparelho repressivo que tornava o czarismo cada vez mais objeto do ódio
popular. Dessa forma, quando eclodiu a primeira grande guerra, abrindo uma nova
crise e acendendo o estopim para que a revolução fizesse saltar pelos ares todo
o corroído edifício do Estado absolutista, preparando as condições para a
revolução proletária mundial independente da vontade dos blocos imperialistas
que impulsionaram a guerra, a revolução russa já conhecera, nas palavras de
Lenin, o seu “ensaio geral” em 1905.
A 1ª Guerra Mundial que
começou em agosto de 1914, como consequência da disputa entre as principais
potências imperialistas por mercados e por uma nova partilha do mundo colonial,
promovendo a maior carnificina humana jamais conhecida até então, embotou
temporariamente a consciência dos trabalhadores com o nacionalismo e o
patriotismo belicista. Uma onda chauvinista atingiu todas as camadas da
sociedade russa, inclusive a classe operária, que se viu afetada pela
mobilização de milhões de operários e camponeses para as tropas da frente de
batalha, desarticulando temporariamente o movimento operário. A vanguarda
revolucionária e os dirigentes do partido bolchevique se viram isolados das
massas durante todo um período. Mas, apesar do isolamento, se mantiveram firmes
na defesa da derrota de ambos os blocos imperialistas em conflito e pela
transformação da guerra imperialista em guerra civil do proletariado contra as
burguesias de seus países, em defesa da revolução proletária mundial como única
saída para a humanidade diante dos horrores da guerra imperialista. A
destruição de forças produtivas se fez particularmente insuportável sobre os
países mais atrasados. Na Rússia, a indústria de guerra devorava todos os
recursos agravando a situação de miséria das massas trabalhadoras.
Aproximadamente 50% de toda a produção e cerca de 75% da produção têxtil foram
destinados a suprir as necessidades do exército. Ao final de 1916, as tropas russas
já estavam exauridas pela fome. A guerra já custara ao país 1 milhão e 700 mil
mortos, destruíra 25% da indústria e 9% da agricultura. As derrotas na frente
de combate, o baixo nível de provisões, a desorganização dos transportes e os
abusos dos oficiais acabaram por abater completamente o moral dos soldados
russos. As deserções adquiriram proporções massivas. A escassez, a miséria, a
fome e o aumento vertiginoso dos preços faziam insuportável a situação dos
operários e camponeses em todo o país, minando a febre patriótica que
contaminou a sociedade no início da guerra. A responsabilidade por toda essa
catástrofe recai sobre o Czar e a casta dirigente do Estado. A crise social
passou a se refletir no círculo dirigente do Estado, através de intrigas palacianas
que culminaram com o assassinato de Rasputin, o sacerdote charlatão que era
conselheiro e “guia espiritual” do czar e da czarina, interferindo diretamente
nas decisões de governo e que resumia em sua pessoa toda a podridão e corrupção
da autocracia czarista. A Revolução Bolchevique foi uma consequência direta da
primeira grande crise imperialista que teve sua expressão maior e mais trágica
na I Guerra Mundial. Apesar de não ser um marxista, o rigoroso historiador
Edward Hallet Carr reconhece que “A Revolução constituiu o primeiro desafio
claro ao sistema capitalista, que alcançou seu ponto culminante na Europa no
final do século XIX. Sua aparição durante a I Guerra Mundial, e em parte como
consequência desta, foi mais que uma coincidência. A guerra descarregou um
golpe mortal na ordem capitalista internacional, tal como existia antes de
1914, e revelou sua instabilidade inerente. A revolução pode ser considerada,
ao mesmo tempo, como uma consequência e uma causa do declínio do capitalismo”
(Edward H. Carr, A Revolução Russa de Lenin a Stalin, 1917-1929, Rio de
Janeiro, Zahar, 1980).
A guerra mundial agravou
a crise do Estado absolutista e gerou uma conjuntura extremamente favorável
para a derrubada do Czar Nicolau II. Em apenas cinco dias, de 23 a 28 de
fevereiro, segundo o calendário russo (8 a 13 de março pelo calendário
ocidental), a insurreição proletária pôs abaixo a secular monarquia imperial
russa. Mas em seu lugar surgiu um governo de latifundiários capitalistas e da
burguesia liberal (outubristas e democratas-constitucionalistas), o Governo
Provisório burguês de Lvov, Gutchkov e Miliukov, que nasceu da Revolução de
Fevereiro como consequência das limitações da luta espontânea das massas. Lvov
era um latifundiário e deputado da extrema direita. Miliukov era líder do
principal partido burguês, conhecido como Partido dos Democratas
Constitucionalistas ou KDT (Kadete). Gutchkov dirigia os Outubristas, que
absolutamente nada tinham a ver com a revolução de outubro de 1917, eram assim
chamados porque foram criados em apoio ao Manifesto promulgado pelo Czar em
Outubro de 1905. Lenin, que se encontrava na Suíça quando explodiu a Revolução,
analisou criteriosamente os acontecimentos através de uma série de artigos
conhecidos como “Cartas de Longe”, em que escreveu ao CC do partido bolchevique
em Petrogrado: “Todo o curso dos acontecimentos da revolução de Fevereiro-Março
mostra claramente que as embaixadas inglesa e francesa, com os seus agentes e
‘ligações’, que há muito faziam os mais desesperados esforços para impedir
acordos ‘separados’ e uma paz separada entre Nicolau II... e Guilherme II,
organizaram diretamente a conspiração, em conjunto com os outubristas e
democratas-constitucionalistas, em conjunto com uma parte do generalato e do
corpo de oficiais do exército e em especial da guarnição de Petrogrado, para
depor Nicolau Romanov”. Analisando de um ponto de vista marxista a correlação
das forças sociais na revolução Lenin afirmava: “Se a revolução venceu tão
rapidamente e – aparentemente, ao primeiro olhar artificial – de um modo tão
radical, é apenas porque, por força de uma situação histórica extremamente
original, se fundiram, e fundiram-se com uma notável ‘harmonia’, correntes
absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogêneos,
tendências políticas e sociais absolutamente opostas. A saber: a conspiração
dos imperialistas anglo-franceses que impeliram Miliukov, Gutchkov e Cia a
tomarem o poder, no interesse do prosseguimento da guerra imperialista... E,
por outro lado, um profundo movimento proletário e popular de massas (de toda a
população da cidade e do campo), com caráter revolucionário, pelo pão, pela
paz, pela verdadeira liberdade” (Cartas de Longe, 7 a 26 de março de 1917). Nos
primeiros dias de março se organizaram sovietes em todas as fábricas, bairros,
localidades e regiões. Os mencheviques e socialistas-revolucionários elegeram a
imensa maioria nos sovietes. Em essência, a influência dos mencheviques e
socialistas-revolucionários refletia o peso social da pequena-burguesia russa,
sobretudo das massas camponesas recém-despertadas para a vida política e que se
encontravam concentradas aos milhões como soldados do exército. O Partido
Bolchevique que na época contava com cerca de 40 mil militantes, embora tenha
estado na linha de frente da insurreição, estava longe de ser a força política
com maior influência de massas. Mesmo em Junho de 1917 os bolcheviques ainda
detinham apenas cerca de 10% dos delegados ao I Congresso de Sovietes de
Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia (apenas 105 do total de 1090 de
delegados eram bolcheviques).
Na noite de 27 de
fevereiro, ocorreu a primeira reunião do Soviete de Petrogrado, que criou o
Comitê Executivo Central composto em sua maioria por mencheviques e
socialistas-revolucionários. O Soviete se declarou órgão dos deputados
operários e soldados e era de fato quem detinha o poder político, colocando as
tropas sob seu comando e determinando que as ordens do Comitê da Duma (a Duma
era uma espécie de Câmara de Deputados que foi criada pelo czarismo pressionado
pela revolução de 1905) só seriam cumpridas se não se chocassem com as do
Soviete. Porém, dois dias depois, os membros mencheviques e socialistas
revolucionários do Comitê Executivo do Soviete concluíram um pacto com a Duma, avalizando
a formação de um Governo Provisório composto por partidos monarquistas e
burgueses, presidido por Lvov. Contrariando uma resolução do Comitê Executivo
do Soviete de Petrogrado, adotada na tarde do dia 1º de março, que decidira não
indicar representantes para compor o governo burguês, a direção do soviete
apresenta o nome de Alexandre Kerensky, um parlamentar de um partido
pequeno-burguês conhecido como Trudovique que havia sido eleito em 1912 para a
Duma para compor este primeiro governo provisório como Ministro da Justiça. Os
Trudoviques nasceram, em 1907, de uma ruptura da ala direita do Partido
Socialista Revolucionário (SR). Os SRs compunham um partido radical pequeno
burguês, camponês, herdeiro dos Narodniks que empregavam métodos de terrorismo
individual contra o czarismo. Outro “socialista” indicado ao primeiro
ministério provisório foi o menchevique N. S. Tchkheidze. Dessa maneira, mais
uma vez na história, os trabalhadores que espontaneamente realizaram a
revolução de fevereiro entregaram voluntariamente o poder à burguesia. Assim, a
Revolução de Fevereiro desembocou na constituição de um governo burguês
fortemente apoiado nas organizações de massa, os sovietes, através de suas
direções conciliadoras.
Após a queda do
Czarismo, a situação peculiar na Rússia consistia em que, sob a política dos
mencheviques e socialistas-revolucionários, a Revolução de 27 de Fevereiro
havia dado o poder à burguesia. Faltava ainda ao proletariado o grau de
consciência e organização necessárias para tomar todo o poder em suas próprias
mãos, passando por cima de suas direções reformistas tradicionais. Forjar-se
como o instrumento que vai possibilitar aos trabalhadores preencher esta
carência política é a grande contribuição à história da luta de classes que os
bolcheviques viriam a dar. Não antes sem uma ferrenha luta interna promovida
por Lenin contra a posição dos dirigentes locais do partido, Stalin, Kamenev,
Olminsk, Kalinin e Muranov de apoio crítico ao Governo Provisório, de
fazer-lhes exigências políticas por pão, paz e terra, mantendo inclusive
conversações para a reunificação com os mencheviques. A partir de suas “Cartas
de Longe”, como vimos, Lenin defendeu que a política correta dos bolcheviques
deveria ser denunciar os líderes mencheviques e socialistas-revolucionários
como conciliadores e bajuladores da burguesia. Em um segundo documento
intitulado “Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução” que ficou
conhecido como “Teses de Abril”, Lenin combate a linha colaboracionista dos
dirigentes bolcheviques locais: “Nenhum apoio ao Governo Provisório. Explicar a
completa falsidade de suas promessas, sobretudo sobre a da renúncia das
anexações. Desmascarar este governo, que é um governo de capitalistas, invés de
propagar a inadmissível e ilusória ‘ exigência’ de que deixe de ser
imperialista” (7 de abril de 1917). Nas “Teses” Lenin defende a realização
imediata de um Congresso do Partido para modificar seu programa mínimo, o qual
considera antiquado; a reformular as posições sobre o imperialismo, a guerra
imperialista e, sobre o Estado, apontando que a República soviética seria a
versão mais acabada de um Estado que tem como exemplo a Comuna de Paris. Ele
reivindica também a substituição do nome do Partido de “Social democratas
(bolchevique)” para Comunista. Para dobrar os setores conciliacionistas da
direção bolchevique em favor da ruptura revolucionária com o governo
provisório, Lenin teve que recorrer às bases do partido, que aprovaram toda a
linha política das Teses de Abril. Como parte desse combate, conseguiu
aproximar do Partido Bolchevique, a organização Inter-bairros de Petrogrado.
Este grupo, vinculado a Trotsky, havia tomado postura a favor do poder
soviético, mas a política implementada por Kamenev e Stalin no partido, o tinha
dissuadido, uma vez que desde a Revolução de 1905 defendia que somente a
revolução proletária na Rússia poderia realizar as tarefas democráticas
burguesas e iniciar as tarefas de construção do socialismo. Depois de um longo
périplo desde o Canadá à Escandinávia, Trotsky regressou à Rússia em 5 de maio.
De imediato se integra na organização Inter-bairros, onde militam vários
mencheviques internacionalistas, Yureniev e Karajan, antigos bolcheviques e, no
geral, os militantes que se viram vinculados a ele há vários anos: Ioffe,
Manuilsky, Uritsky, da redação do Pravda (A verdade) e Pokrovsky, Riazánov e
Lunacharsky do Nashe Slovo (Nossa Palavra). O partido bolchevique de 1917, o
partido comunista cuja constituição defendia Lenin em abril, em torno dos
“melhores elementos do bolchevismo”, nasceu da confluência, no seio da corrente
bolchevique, das pequenas correntes revolucionarias independentes que integram
tanto a organização Inter-bairros como as numerosas organizações
socialdemocratas internacionalistas que, até então, haviam ficado à margem do
partido de Lenin.
Lenin definiu como
característica peculiar da Rússia após a Revolução de Fevereiro, a dualidade de
poderes entre o Governo Provisório e o Soviete de Petrogrado. “Esta dualidade
de poderes manifesta-se na existência de dois governos: o governo principal,
autêntico e efetivo da burguesia, o governo provisório de Lvov e companhia, que
tem em suas mãos todos os órgãos do poder, e um governo suplementar,
secundário, de controle, personificado pelo Soviete de deputados operários e
soldados de Petrogrado, que não tem nas suas mãos os órgãos do poder de Estado,
mas se apoia diretamente na indubitável maioria absoluta do povo, nos operários
armados e soldados” (Teses de Abril). Os sovietes de operários, que apareceram
pela primeira vez durante a Revolução de 1905, ressurgiram em Fevereiro de 1917
como forma de organização operária de base, com um grau elevado de
espontaneidade, onde o proletariado russo se organizava autonomamente por zona
residencial e/ou por fábrica. Assim, ocorria uma unificação do poder econômico
e político em uma nova instituição social, onde os operários elegiam os seus
delegados diretamente. Estes poderiam ter seus mandatos revogáveis a qualquer
momento e expressavam a vontade das assembleias e plenárias operárias de base.
Os sovietes representavam um poder de classe paralelo ao poder político oficial
do governo da burguesia e dos partidos conciliadores (mencheviques e
socialistas-revolucionários). Obviamente estes dois poderes não poderiam
coexistir indefinidamente. A dualidade de poderes era característica de uma
situação revolucionária que não se definira, revelando um impasse na luta de
classes. Um dos poderes teria que suprimir o outro. Visto que sob essa
dualidade de poderes a burguesia não tinha forças para reprimir e desarmar os
operários e soldados revolucionários, a Rússia era então o país mais
democrático dentre as nações beligerantes. Nessas circunstâncias, segundo
Lenin, a tarefa central dos bolcheviques era realizar um paciente trabalho de
crítica e esclarecimento dos erros dos partidos pequeno-burgueses,
socialista-revolucionário e menchevique; de preparação e coesão dos elementos
genuinamente proletários, comunistas; de libertação do proletariado da
embriaguez pequeno-burguesa generalizada. Apontando que as contradições da
dualidade de poder têm que ser resolvidas em favor do poder proletário, Lenin
defende neste momento a consigna de “Todo o poder aos Sovietes” como
instrumento de mobilização e conscientização das massas.
A primeira crise do Governo
Provisório ocorreu em abril (maio) de 1917. No dia 20 de abril (3 de maio), o
Ministro dos Negócios Estrangeiros, Miliukov (KDT), confirmou a decisão do
governo provisório de respeitar todos os tratados concluídos pelo governo do
czar Nicolau II, ou seja, manter a Rússia na guerra de rapina imperialista. No
dia seguinte o operariado de Petrogrado realiza uma manifestação de protesto
que mobilizou cerca de 100 mil operários e soldados, provocando a renúncia de
Miliukov. Para sanar a crise, o Comitê Executivo Central dos Sovietes vota por
conformar um segundo governo provisório de coalizão composto por 10 ministros
burgueses e cinco ministros mencheviques e socialistas-revolucionários
indicados pelo Soviete de Petrogrado, entre eles Skobelev, Tchernov e Tsereteli.
Kerensky assumia o Ministério da Guerra e da Marinha. Forma-se o segundo
Governo Provisório, do qual, somente o partido bolchevique fica de fora. Este
tipo de governo de colaboração de classes, preventivamente
contrarrevolucionário, vem a ser anos depois propagandeado como exemplo pelos
PCs stalinizados mundo afora com o nome de frente popular. O novo governo em
nada correspondia aos anseios revolucionários das massas: O país continuava na
guerra de pilhagem imperialista, o desemprego e a fome ameaçavam a classe
operária e os camponeses pobres continuavam sem terra.
Em resposta a essa
situação, o Partido Bolchevique convocou uma manifestação para o dia 10 de
Junho, ocasião da abertura do I Congresso Pan-Russo dos Sovietes. O Comitê
Executivo Central dos Sovietes e o Governo Provisório proibiram manifestações
de rua durante três dias. Não querendo opor-se à decisão do Congresso
soviético, os bolcheviques cancelaram a manifestação. Porém, no dia 12 a
direção socialista-revolucionária e menchevique do Congresso dos Sovietes
aprovou uma resolução para realizar uma manifestação para o dia 18 de Junho,
com o claro objetivo de ganhar as massas para o lado do governo provisório e
angariar apoio para a continuidade da guerra imperialista. Entretanto, no dia
da manifestação (18) cerca de 500 mil operários e soldados de Petrogrado
desfilaram ao som das palavras de ordem do Partido Bolchevique contra a guerra
imperialista, fora os 10 ministros capitalistas e por todo o poder aos
sovietes. O crescimento da influência de massas do Partido Bolchevique era
evidente. Desde a Revolução de Fevereiro os operários, soldados e camponeses
haviam dado todo seu apoio ao Comitê Executivo dos Sovietes, ou seja, aos
mencheviques e socialistas-revolucionários. As massas estavam dispostas a
defendê-los com todas as suas forças, incluindo as armas. Mas o estado de
espírito revolucionário das massas não admitia traição e covardia. Haviam
tomado o poder em Fevereiro e o confiaram ao Comitê Executivo dos Sovietes que,
por sua vez, devolveu o poder aos piores inimigos da revolução, refugiando-se
covardemente atrás do Governo Provisório dos latifundiários e da burguesia. Os
partidos conciliadores dos Sovietes se negavam a tomar as terras dos
latifundiários, os bancos dos burgueses e pôr fim à guerra imperialista.
Os bolcheviques eram
contra a insurreição armada neste momento, pois acreditavam que a crise ainda
não estava madura, que o exército e as províncias não estavam preparados para
apoiar a insurreição em Petrogrado que ficaria isolada. Lenin chega a comentar no
dia 3 de julho “Se não nos fuzilam agora é porque são uns imbecis!”. Mas, mesmo
neste descompasso com o interior do país era difícil conter o estado de
radicalização do proletariado em Petrogrado. O CC bolchevique juntamente com a
direção regional de Petrogrado tomam a decisão de participar da manifestação
para dar-lhe um caráter pacífico e organizado. A paciência das massas foi se
esgotando até explodir nas radicalizadas manifestações espontâneas que
constituíram as “Jornadas de Julho”, quando 500 mil operários e soldados
armados exigiram que o Soviete de Petrogrado tomasse todo o poder em suas mãos.
O Governo resolveu reprimir a manifestação pacífica. Após as Jornadas de Julho,
o Governo Provisório desencadeou uma feroz perseguição aos bolcheviques. Sua
imprensa foi proibida. O operário bolchevique, Ivan Voinov, foi assassinado no
dia 06 daquele mês quando distribuía a publicação Listok Pravda (Folha da
Verdade) pelo aparato repressivo ligado aos kadetes. A direita aproveita o
refluxo, aproveitando a ofensiva alemã no front e lança uma campanha de
calúnias acusando os bolcheviques de “agentes do Kaiser” e Lenin de vendido.
Trotsky foi preso e é ordenada a prisão de Lenin que não se apresenta e foge
para a Finlândia. No dia 12 (25) de julho foi restabelecida a pena de morte
para os soldados que não obedecessem a seus oficiais. Houve fuzilamento de
soldados na frente de combate e desarmamento dos operários. A perseguição foi
um duro golpe contra a situação de dualidade de poderes. A partir de então,
para Lenin, já não tinha sentido acreditar na evolução pacífica da revolução em
direção a um governo soviético. “A palavra de ordem de ‘Todo o poder aos
sovietes’ era a palavra de ordem de desenvolvimento pacífico da revolução, que
de 27 de fevereiro até 4 de julho foi possível e, como é natural, o mais
desejável de todos, porém hoje já é absolutamente impossível. (...) O
equilíbrio estável do poder cessou, o poder passou, no lugar decisivo, para as
mãos da contrarrevolução. (...) Nestas condições, a palavra de ordem de
passagem do poder aos sovietes pareceria uma quixotada ou uma fraude. Manter
esta palavra de ordem equivaleria, objetivamente, a enganar o povo” (A
propósito das consignas, meados de julho de 1917). A incapacidade do governo
provisório de colocar um ponto final no clima de instabilidade social levou à
saída dos ministros do partido democrata-constitucionalista (Kadete) do
governo. Forma-se então o terceiro governo provisório e Kerensky assume a
condição de primeiro ministro.
Em agosto de 1917
ocorreu a tentativa de golpe comandada pelo General Kornilov, que expressava os
objetivos contrarrevolucionários da burguesia e dos latifundiários feudais de
esmagar o proletariado revolucionário e campesinato russos. Kerensky sempre foi
conivente com a preparação do golpe fascista de Kornilov, mas quando percebeu
que também não seria poupado foi obrigado a aceitar o rearmamento do
proletariado para derrotar a tentativa golpista. No dia 25 de agosto (7 de
setembro) Kornilov enviou o Batalhão da 3ª Cavalaria contra Petrogrado. Sob a
orientação direta de Leon Trotsky, foi organizada a Guarda Vermelha que ergueu
as barricadas e preparou a defesa da cidade. O avanço das tropas foi
interrompido e seu moral arrasado pelos agitadores bolcheviques, imprimindo uma
rápida derrota a kornilovada. O Partido Bolchevique saiu desse episódio como o
grande responsável pela vitória dos operários e soldados de Petrogrado. O
fracasso da tentativa golpista significou uma derrota da burguesia e da
aristocracia russas e isolamento completo do governo de Kerensky. A essa
altura, só lhe restava resistir como pudesse e ganhar tempo até que os alemães
entrassem na Rússia e desbaratassem as forças bolcheviques e os sovietes de
operários, soldados e camponeses. A cidade de Riga, atual capital da Letônia,
foi entregue ao governo alemão e Petrogrado estava em vias disso, segundo se
tomou conhecimento mais tarde através da publicação dos tratados secretos
estabelecidos entre Kerensky e o governo alemão. A vitória da Insurreição de
Outubro impediu uma carnificina sobre a classe operária.
Como consequência da
vitória sobre as forças de Kornilov, o Partido Bolchevique obteve uma rápida
ascensão junto das massas. O prestígio e a influência dos bolcheviques se
manifestaram na vitória esmagadora que obtiveram nas eleições para os sovietes
de Moscou e Petrogrado, as duas maiores cidades do país. Em 9 de setembro (22),
Trotsky foi eleito Presidente do Soviete de Petrogrado. Após a derrota do golpe
direitista de Kornilov operou-se um importante giro à esquerda entre os
camponeses, que protagonizaram ocupações e expropriações de terras e
insurreições regionais que tiveram um grande efeito obre as tropas compostas
basicamente por camponeses. A frente desse processo colocaram-se novos
dirigentes operários organizados no Comitê de Defesa da Revolução, que se
encarregou de armar os trabalhadores. A maioria era bolchevique. Lenin lança
uma nova carta ao CC do partido no dia 15 (28) de setembro intitulada “Os
bolcheviques devem tomar o poder”. A proposta vence ainda que por uma pequena
minoria. Seis votos a favor, quatro contra e seis abstenções. Perdendo peso nos
sovietes para os bolcheviques, os partidos conciliadores governistas tentaram
criar um contrapeso parlamentarista burguês com a Conferência Democrática convocada
pelo Comitê Executivo Central dos Sovietes para 14 a 22 de setembro (27 de
setembro a 25 de outubro) de 1917 em Petrogrado. Dela participaram 1.500
delegados. Mencheviques e SRs fizeram o possível para reduzir o número de
delegados operários e garantir uma maioria burguesa e pequeno-burguesa. Esta
manobra continuou mesmo depois da revolução com a chantagem da Assembleia
Constituinte que se realizou em 5 (18) de janeiro de 1918. Esta Constituinte
composta ainda por uma maioria contrarrevolucionária recusou-se a reconhecer o
poder soviético. Foi dissolvida por decreto do Comitê Executivo Central
Soviético em 6 (19) de janeiro de 1918.
A intervenção dos
Sovietes na vida política crescia cada vez mais. A desorganização e a sabotagem
da economia obrigava os sovietes a manter sob seu controle a distribuição dos
alimentos, a eletricidade, o transporte, tanto para as cidades como para a
frente. Colocava-se a questão de saber quem deveria dirigir a economia: o
governo de Kerensky, que era a sombra da burguesia e não tinha nenhum interesse
em enfrentar-se com ela, ou os Soviets, cuja tarefa deveria levar adiante as
primeiras medidas para a transformação socialista da sociedade. Lenin
pressionava e insistia que não se podia deixar passar o tempo. Em 29 de setembro
de 1917, Lenin escreve uma carta ao Comitê Central do Partido Bolchevique que
vacilava, exigindo a organização imediata da tomada do poder. Sem meios termos
declarava: “A crise está madura”. Explica novamente porque a consigna de “Todo
poder ao Soviete!”, não mais atendia às necessidades imediatas da luta de
classes, mesmo quando os bolcheviques já dominavam a maioria dos Sovietes. Era
necessário organizar militarmente o assalto ao poder burguês. A partir daquele
momento Lenin considera que esperar seria um crime contra a revolução mundial.
Crime com o qual ele não compartilhava e apresentava seu pedido de demissão do
CC, reservando-se ao direito de fazer propaganda nas bases do partido. A
situação mais favorável para a insurreição era o momento em que a correlação de
forças favorecia aos bolcheviques e esse momento havia chegado. Se o partido
deixasse passar o momento, se hesitava, poderia levar as massas ao
descontentamento, à desconfiança e à decepção e com isso à derrota da
revolução. Os bolcheviques haviam dado passos muito importantes na organização
e na ampliação de sua influência sobre as massas. Desde que se opuseram ao
envio de 1/3 da guarnição de Petrogrado para frente de combate como queria
Kerensky, se criou o Comitê Militar Revolucionário – CMR (em 16 de outubro),
órgão legal da insurreição, presidido por Trotsky. A tática do Governo
Provisório era retirar da capital os regimentos mais revolucionários e,
portanto, mais perigosos, que estavam alinhados com os bolcheviques. Através do
CMR foram nomeados comissários bolcheviques em todas as unidades e instituições
militares, estabelecendo vias de comunicação entre os soldados e os operários.
Assim ia se consolidando os elementos de um poder proletário. Com o apoio dos
soldados, o CMR realizou o armamento sistemático dos trabalhadores, reforçando
a Guarda Vermelha. Destacamentos de operários, soldados e marinheiros armados
se preparavam estrategicamente em posições chaves da cidade. Os capitalistas
viam como a corrente da história seguia adiante sem que pudessem fazer nada. No
final de setembro, o Soviete de Petrogrado exigiu do Comitê Executivo dos
Sovietes a convocação do II Congresso dos Sovietes. O Congresso conseguiria
unificar o papel e a ação de todas as forças para defender-se da contrarrevolução,
para discutir a organização do poder revolucionário e a derrubada do governo
Kerensky. Os bolcheviques pediram a sua convocação para a primeira semana de
outubro e ameaçaram fazer sua própria convocação do Congresso caso este não
fosse convocado pelo Comitê Executivo, que diante dessa situação se viu
obrigado a convocar o Congresso dos Sovietes para 20 de outubro. Porém, os
conciliadores do Comitê Executivo sabiam que o Congresso não deixaria passar em
branco a questão do poder. Cientes do perigo procuram adiar a data. Em
resposta, os bolcheviques começaram uma ampla campanha de agitação em torno da
necessidade de convocação do Congresso, conseguindo o apoio dos sovietes
locais, onde apenas tinham influência, passando a ter maioria. Sob a consigna
bolchevique de “todo o poder aos sovietes”, os sovietes de toda a Rússia
passaram a exigir a imediata convocação do Congresso. Quando os mencheviques e
socialistas revolucionários do Comitê Executivo viram que não podiam mais
continuar sabotando a realização do Congresso, finalmente decidiram convocá-lo
para o dia 25 de outubro.
No dia 10 de outubro foi
realizada a primeira reunião do CC bolchevique com a presença de Lenin que
voltou da clandestinidade na Finlândia. Ele aprofundou pessoalmente a linha de
defesa de suas cartas escritas na clandestinidade assumida desde julho, pela
tomada imediata de medidas políticas e militares para organizar a insurreição.
Nas semanas que sucederam o golpe de Kornilov e a conquista da maioria dos
Sovietes o CC havia evoluído à esquerda. Resultado: dez contra dois em favor do
assalto ao poder. As dúvidas e vacilações sobre a possibilidade de triunfo da
classe revolucionária levaram Kamenev e Zinoviev, dois importantes membros do
Comitê Central, a votarem contra a insurreição. Argumentaram que o partido
estava subestimando as forças inimigas; que o governo dispunha de destacamentos
de choque, dos cossacos, do Estado Maior, dos cinco mil junkers e de artilharia
que iam massacrar o povo e derrotar a revolução. Negavam, inclusive, que havia
um estado de espírito combativo entre as massas. Aludiam que com as forças
atuais a tática correta seria exigir do Governo a convocação definitiva da
Assembleia Constituinte e que, na medida em que a influência dos bolchevique
havia crescido no último período se conseguiria obter 1/3 dos mandatos da
Assembleia. Isso significava relegar ao partido leninista o papel de opositor
dentro do regime democrático burguês. Kamenev e Zinoviev subestimavam o apoio
real das massas aos bolcheviques, sustentando a necessidade de um “poder
estatal combinado” entre a Assembleia Constituinte e os Sovietes. Demonstrando
falta de confiança na força real da classe operária dos camponeses, Zinoviev e
Kamenev desprezaram os princípios elementares do Partido Bolchevique e tornaram
públicas suas divergências, expondo as intenções do partido ao inimigo de
classe, uma criminosa quebra do centralismo. Essa atitude de Zinoviev e Kamenev
levou Lenin a defender a expulsão do partido dos dois dirigentes. Sua posição,
entretanto, não foi aprovada pelo Comitê Central. A maioria do partido estava
de acordo com a tomada do poder. Nesse momento, como já havia ocorrido em
abril, o apoio às posições de Lenin provinha das tradições de classe dos
operários bolcheviques que garantiram a manutenção da linha correta. Este
episódio da Revolução de Outubro demonstrou a importância do fator subjetivo,
ou seja, do partido leninista e a necessária democracia interna que o
caracterizava. Tanto nos debates de abril como nos de outubro, as discussões
foram totalmente amplas, sem nenhum tipo de restrições na hora de expor as
divergências. Graças ao debate democrático nas instâncias do Partido
Bolchevique conseguiu a preparação necessária para dirigir a insurreição de
outubro.
Ante o temor de que o
Congresso dos Sovietes fugisse de seu controle, em 24 de outubro o Governo
decidiu dissolver o CMR e fechar a imprensa bolchevique. O cruzador Aurora,
cuja tripulação era majoritariamente bolchevique recebe a ordem de levantar
âncoras e posicionar-se em frente ao Palácio de Inverno. O CMR, sob a liderança
de Trotsky, organizou a defesa da imprensa bolchevique e chamou os ferroviários
e soldados a paralisarem as tropas contrarrevolucionárias que haviam sido
chamadas para Petrogrado. O governo Kerensky achava-se impotente. O CMR
trabalhou durante todo o dia e toda a noite (24/25 de outubro), ocupando
pontes, estações, edifícios, etc., transferindo para o controle do Soviete de
Petrogrado os principais órgãos de poder. O Instituto Smolny, sede do Soviete
de Petrogrado e do Partido Bolchevique, estava fortificado. Vinte e quatro
horas depois, os últimos representantes do Governo Provisório renderam-se no
Palácio de Inverno. Kerensky já havia fugido para o exterior. No dia 24 de
outubro, um dia antes do II Congresso Pan-Russo dos Sovietes, Kerensky ordena
desesperado a repressão contra o soviete de Petrogrado e aos bolcheviques,
fornecendo ele próprio o motivo para a ação armada preventiva bolchevique: a
defesa do II Congresso soviético. Mais tarde, Trotsky relata que segundo suas
estimativas apenas 30 mil homens participaram da luta. O II Congresso, do qual
participam 390 bolcheviques de um total de 673 delegados, avaliza a insurreição
e o novo Governo dos Comissários do Povo presidido por Lenin. O CMR entrega o
poder ao Soviete, dando início à construção do primeiro Estado operário do
século XX. Refletindo o internacionalismo da Revolução de Outubro, a primeira
resolução do Congresso dos Sovietes foi um chamado a todos os povos em guerra
para lutar por uma paz verdadeiramente democrática. A conduta dos bolcheviques
neste momento crucial para a vitória da revolução demonstrou com absoluta
clareza a necessidade vital da construção de um partido comunista de vanguarda,
demolindo o fetichismo da “auto-organização” da classe operária independente de
uma direção revolucionária, como bem caracterizou Trotsky em seu “Lições de
Outubro”: “Não pode triunfar a revolução proletária sem partido, a parte do
partido ou por um substituto do partido”.
Um evento desta
magnitude histórica para a luta de classes não poderia deixar de despertar
acaloradas polêmicas desde os distintos matizes de esquerda até os ataques
raivosos dos contrarrevolucionários repetidos até a exaustão nos dias de hoje.
Em resumo: 1) O que ocorreu não foi uma revolução, mas um golpe de Estado
ilegítimo arquitetado pela astúcia perversa de Lenin. Como vimos, Lenin e os
bolcheviques acreditavam a princípio na possibilidade dos sovietes assumirem
gradativamente o poder a partir do desgaste crescente dos governos provisórios burgueses,
o que não foi possível graças à repressão desesperada e crescente patrocinada
pelo regime moribundo burguês que recorreu ao golpe de Estado fascista de
Kornilov e a medidas militares para trucidar os bolcheviques, impedindo sua
ascensão através da luta política pacífica. A própria burguesia ensinou aos
bolcheviques que esta via não era possível, como todas as experiências
posteriores de governos de frente populares (França, Espanha, Indonésia, Chile,
Nicarágua...), nacional populistas de esquerda (Jango) e bonapartistas sui
generis como veremos em breve no desenlace da experiência com os bolivarianos
atuais, nos comprovam que não há via pacífica para o socialismo. A tomada do
poder em outubro de 1917 foi um golpe de Estado na medida em que será qualquer
assalto ao poder executado por fora da institucionalidade ou legalidade
burguesa existente. O que se distingue dos golpes militares burgueses é o fato
destes serem executados por dentro do próprio aparato repressivo estatal. Neste
sentido, só pode haver revolução através de um golpe de Estado, executado por
organismos armados da população através do emprego da ação direta. Todavia,
ninguém pode esperar que uma insurreição armada espontânea triunfe sobre um
aparato repressivo profissional de milhares de homens por mais debilitado que
esteja o governo burguês e por mais favorável que seja a situação
revolucionária. A insurreição armada é uma forma especial de luta política que
possui suas próprias leis, como expressou Marx, “a insurreição armada é, como a
guerra uma arte”. Estava claro que a conspiração militar para o assalto ao
poder instigada por Lenin nada tinha a ver com o blanquismo. Naquele momento,
seu partido estava profundamente enraizado no proletariado, contava com as
simpatias da maioria do povo, suas palavras de ordem (todo poder aos sovietes,
terra para os camponeses, paz imediata) tinham a mais ampla popularidade e ele
havia conquistado a maioria dos órgãos de luta revolucionária, os sovietes. 2)
A ditadura do proletariado não foi mais do que uma fachada para instaurar de
fato uma ditadura do partido único sobre o proletariado. Lenin insistiu até o
final em manter a coalizão com o partido socialista-revolucionário de esquerda,
uma vez que ao participar do governo provisório capitalista os mencheviques e
os SRs foram os primeiros a organizar a resistência contrarrevolucionária à
revolução. Todavia, após a tomada do poder, foi-lhes permitido seguir
organizados. Os mencheviques chegaram a realizar uma Conferência de cinco dias
em Moscou, em outubro de 1918. Impor-se como partido único nos sovietes não foi
um desejo bolchevique, mas uma imposição da guerra civil, responsável direta
pelo fim do pluripartidarismo soviético. Antes de tomar decisões mais
drásticas, o governo bolchevique sofreu muitos ataques. No dia 20 de julho de
1918, o popular orador bolchevique Volodarsky, foi assassinado por um SR. Em 17
de agosto do mesmo ano, Moisei Uritsky, que ingressou formalmente no CC
bolchevique junto com Trotsky e foi posteriormente nomeado a dirigente da recém-fundada
polícia política soviética, a Cheka, foi assassinado por um militar Kadete. No
dia 30 do mesmo mês, era a vez do próprio Lenin ser alvejado com duas balas
disparadas pela SR de esquerda, Fanny Kaplan. Foi a gota d´água que transbordou
para acabar com qualquer vacilação sobre a necessidade de recorrer ao Terror
Vermelho. Crimes como estes contra a jovem república soviética selaram o fim de
todos os compromissos e a colaboração dos bolcheviques com os grupos aos quais
os bolcheviques tentaram aliar-se para governar o país. A acusação de “ditadura
sobre o proletariado” é o argumento mais popular sobre o caráter não proletário
do Estado soviético, referindo-se ao estrangulamento da liberdade das
organizações proletárias e na onipresença da burocracia. Trotsky refutou estes
argumentos lançados pelos que diante da ascensão da burocracia stalinista deram
à revolução por terminada e passaram a caracterizar a URSS como “capitalismo de
estado”, “coletivismo burocrático” ou algo pior: “é realmente possível identificar
a ditadura de um aparato, que conduziu à ditadura de uma só pessoa, com a
ditadura do proletariado como classe? (...) Esse raciocínio atraente não está
construído sobre uma análise materialista do processo, tal como se desenvolve
na realidade, e sim, sobre esquemas puramente idealistas, sobre normas
kantianas. Alguns nobres ‘amigos’ da revolução formaram uma ideia muito
brilhante da ditadura do proletariado e ficam completamente transtornados com o
fato de que a ditadura real, com a sua herança da barbárie de classe, com as
suas contradições internas, com os erros e crimes da direção, não se parece em
nada à bela imagem que fizeram. Destruídas as suas mais formosas ilusões, dão
as costas à União Soviética. (...) Antecipando-se a nossos próximos argumentos,
nossos adversários se apressarão a replicar: mesmo que a burguesia, como
minoria exploradora, possa manter sua hegemonia também através de uma ditadura
fascista, o proletariado não pode construir a sociedade socialista sem
administrar seu próprio governo, atraindo massas populares cada vez mais amplas
para cumprir diretamente esta tarefa. Em seu caráter geral este argumento é
indiscutível, mas, neste caso específico, significa apenas que a atual ditadura
soviética é uma ditadura doente. As terríveis dificuldades da construção
socialista num país isolado e atrasado, unidas à falsa política da direção —
que, em última instância, também reflete a pressão do atraso e do isolamento —,
levaram a burocracia a expropriar politicamente o proletariado para proteger
suas conquistas sociais com seus próprios métodos. As relações econômicas da
sociedade determinam sua anatomia. Enquanto as formas de propriedade criadas
pela Revolução de Outubro não forem liquidadas, o proletariado continuará sendo
a classe dominante” (A natureza de classe do Estado soviético, ‘A ditadura
sobre o proletariado’, 01 de outubro de 1933). 3) Partindo das próprias
premissas anteriores, o “Terror vermelho” teria instaurado uma tirania
sanguinária desnecessária que reprimiu os próprios trabalhadores, um exemplo
disto foi à repressão aos marinheiros sublevados da base naval de Kronstad. No
inverno de 1920-21, o Estado operário estava arruinado depois de sete anos de
guerra imperialista e de guerra civil. Após a revolução bolchevique que retirou
o país da guerra imperialista, os Exércitos de 14 países capitalistas invadiram
o país para afogar em sangue o nascente poder soviético, perigoso pelo exemplo
que poderia dar aos povos do mundo todo. Muito dinheiro e armamento foram
despejados na construção de um enorme Exército branco dirigido por antigos
comandantes militares czaristas como Denikin, Kolchak, Wrangel, etc. que
massacraram perversamente comunistas, judeus, operários e camponeses que não
colaborassem com a cruzada restauracionista. No verão de 1918, o próprio
Kerensky, que não tinha qualquer simpatia com o Exército Vermelho dos
bolcheviques que o haviam apeado do poder declarou aos jornalistas
estrangeiros: “Não existe crime que os brancos do almirante Kolchak não tenham
cometido. Execuções e torturas foram cometidas na Sibéria, populações de
aldeias inteiras foram massacradas, inclusive professores e intelectuais”
(Dimitri Volkigonov, Lê vrai Lenine, Robert Laffont, 1995). Mesmo depois da
vitória bolchevique, os brancos continuaram mobilizados nas fronteias do país
destroçado. O imperialismo impôs um mortificante bloqueio a URSS. No campo, se
multiplicava a fome, a peste e em algumas aldeias chegou a haver canibalismo.
Os bolcheviques tiveram que improvisar medidas emergenciais para enfrentar
tantas calamidades, o que chamaram de “comunismo de guerra”, cujo eixo era a
expropriação de víveres dos camponeses para alimentar as cidades e o Exército
Vermelho, criando assim um explosivo ressentimento camponês. Na Ucrânia, se
insurgiu um considerável exército camponês, organizado em torno do aventureiro
anarquista Nestor Macno. Na base destes movimentos pequeno-burgueses não eram
os princípios abstratos libertários contra o Estado soviético, mas o desejo de
liberar-se dos grandes capitalistas e latifundiários sem no entanto submeter-se
as necessidades da ditadura do proletariado. Em março de 1921, a guarnição da
fortaleza da ilha báltica de Kronstadt, porta de entrada para Petrogrado, se
rebelou contra o governo bolchevique. A rebelião durou duas semanas até que os
bolcheviques reconquistaram sob o custo de muitas baixas a estratégica base
naval. Este episódio dramático vem sendo utilizado desde então não apenas pelos
anarquistas, mas por todos os que querem identificar o governo bolchevique como
uma ditadura contra as massas. A vanguarda dos marinheiros que havia
participado da linha de frente da revolução bolchevique havia assumido
importantes funções tanto no Exército Vermelho quanto no Estado operário no que
foram substituídos por estratos mais atrasados de camponeses, suscetíveis as
pressões de suas famílias contra a requisição de víveres do “comunismo de
guerra”. Após solicitar a rendição da base militar e tentar negociar um acordo,
os bolcheviques foram obrigados a tomar à força a ilha que se transformara em
baluarte dos exércitos brancos derrotados. A “rebelião” que reivindicava
Sovietes livres, ou seja, sem bolcheviques, imediatamente foi apoiada
publicamente pela contrarrevolução no exílio. De Paris, Miliukov, dirigente dos
Kadetes estampou em seu jornal “Abaixo os bolcheviques! Vivam os sovietes!”
(Poslednie Novosti, 11/03/1921). Em 10 de janeiro de 1994, o então presidente
restauracionista russo Boris Yeltsin, herdeiro dos interesses do Exército
Branco, fez sua homenagem a revolta de Kronsdat. Ironicamente, dentre os
documentos recém-abertos dos arquivos russos e publicados sob o nome de
“Kronshtadtskaia tragediia 1921 goda” (A tragédia de Kronstadt de 1921,
documentos em dois volumes, Enciclopédia política Russa, 1999), comprovam que a
“rebelião” foi de fato uma conspiração branca e imperialista do princípio ao
fim e foi articulada por velhos generais czaristas como A. N. Kozlovsky. Mais
ainda foi comprovada a ligação do dirigente da rebelião, o marinheiro Stepan
Petrichenko, com os brancos. Após a derrota dos amotinados Petrichenko foge
para a Finlândia onde se reúne com as tropas brancas do carniceiro general
czarista Manherheim. 4) Como resultado, também dos preconceitos anteriormente
citados, generalizou-se outro criado pelo dirigente oportunista Kautsky de que
o stalinismo foi uma consequência natural do bolchevismo. Uma grande farsa para
encobrir a própria traição socialdemocrata da revolução na Europa que tratou de
identificar toda medida de força do partido de Lenin contra o regime democrático-burguês
em favor da ditadura proletária como uma anomalia autoritária. Bolchevismo e
Stalinismo não apenas possuem um conteúdo de classe distinto, mas inclusive na
forma estão contrapostos. O stalinismo só conseguiu se estabilizar no poder
depois de uma sanguinária luta que foi concluída com o aniquilamento do partido
de Lenin. Segundo Trotsky, responsável por continuar a batalha de Lenin contra
a burocracia stalinista até seu assassinato por um agente da GPU no México em
1940: “Evidentemente o stalinismo ‘surgiu’ do bolchevismo, mas não surgiu de
uma maneira lógica, mas sim dialética, não como sua afirmação revolucionária,
mas como sua negação termidoriana” (Bolchevismo e Stalinismo, 29 de agosto de
1937).
A tragédia do stalinismo
vem sendo usada por quase um século pelos ideólogos da burguesia e da
pequena-burguesia para incutir nos lutadores sociais preconceitos
anticomunistas que os impeçam de abstrair os ensinamentos valiosíssimos, mais
necessários para a emancipação dos explorados do que o ar que respiram, das
riquíssimas lições do assalto aos céus legadas pela revolução bolchevique.
Todavia, a burocratização stalinista da URSS (ou de qualquer outro estado
operário), qualquer que tenham sido a forma que assumiu em seus ziguezagues à
esquerda ou à direita, desde a coletivização forçada, do chamado “terceiro
período”, passando pelos Processos de Moscou, pelas frentes populares e pela
política de convivência pacífica do pós-guerra, não é mais do que uma expressão
política do refluxo da luta de classes em Estado operário isolado, quando, sob
pressão do imperialismo as camadas dirigentes do aparato estatal, debilitam as
forças da revolução e conduzem objetivamente o país de volta a restauração
capitalista. Desgraçadamente, as diversas oportunidades em que a classe
operária se lançou na luta pelo poder ao longo do século XX, desde a Alemanha
já em 1918-1919, foram derrotadas pelas traições da social-democracia e
posteriormente pelo stalinismo, por faltar ao proletariado uma direção
revolucionária organizada num partido de tipo leninista. A Revolução de Outubro
demonstrou que a luta espontânea do proletariado pode gerar até os embriões de
um futuro Estado operário, como as milícias armadas e sovietes. Mas a classe do
proletariado só pode exercer o seu poder através do partido revolucionário de
tipo leninista. Essa é a principal lição da Revolução de Outubro que o
proletariado de todo o mundo ainda precisa por em prática. A não concretização
da revolução mundial isolou o Estado operário nascido da Revolução de Outubro,
possibilitando sua posterior degeneração burocrática sob a direção do
stalinismo. Mas apesar das deformações burocráticas da URSS, as condições de
vida material e o progresso social proporcionado pela expropriação da burguesia
e a supressão da exploração capitalista durante mais de sete décadas, são um
claro sinal de que o socialismo é a única alternativa histórica para pôr fim às
guerras, ao desemprego, ao latifúndio, à fome e todas as mazelas geradas ou
mantidas pelo capitalismo.
A etapa histórica de
reação política e ideológica aberta a partir da queda do Muro de Berlim e da
destruição contrarrevolucionária da URSS, em 1991, possibilitou ao imperialismo
uma brutal ofensiva sobre as massas exploradas em todo o mundo. Seus
porta-vozes proclamaram a vitória definitiva da “economia de mercado” e da
democracia dos ricos e a “morte do comunismo”. Mas as crises econômicas,
derrotas militares perante a resistência armadas dos povos oprimidos, como no
Líbano, o fiasco da “guerra ao terror” e a crise imobiliária que teve com
epicentro os próprios EUA, puseram um fim à euforia imperialista. A expressão
simbólica disto foi quando Francis Fukuyama teve que morder a língua. Fukuyama
é um ideólogo do imperialismo que fez fama logo após a restauração do capitalismo
na URSS com a expressão “O fim da história”, proclamando a vitória irrevogável
do capitalismo sobre o comunismo. Menos de uma década depois, em uma entrevista
para The New York Times, Fukuyama confessou que foi convencido pelos crashies
financeiros que ameaçam a arrastar o planeta para uma depressão global que
“poderia estar realmente equivocado nos argumentos que expus no “Fim da
História”. A necessidade de derrotar o imperialismo faz da Revolução
Bolchevique, mais do que nunca, uma referência para a luta dos trabalhadores de
todos os países. Portanto, a tarefa que se coloca para os revolucionários de
hoje, é resgatar o legado político e teórico de Lenin e Trotsky, para potenciar
a vitória da revolução mundial imprimindo uma derrota definitiva ao imperialismo
para abrir o caminho ao futuro socialista da humanidade. Passados 96 anos do
grande triunfo histórico Bolchevique, podemos afirmar que as novas gerações
para vencer devem superar a fraude teórica do revisionismo, que maculou a
bandeira da revolução socialista a empunhando com os “levantes populares”
reacionários, organizados pelo imperialismo contra os estados operários e os
governos nacionalistas burgueses.