CEM ANOS DA "REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO" NA RÚSSIA: A
VERDADEIRA ANTE-SALA PARA A TOMADA DO PODER PELO PARTIDO BOLCHEVIQUE!
Neste mês celebramos os cem anos da “Revolução de Fevereiro”
na Rússia como parte do caminho para a vitória Bolchevique em Outubro de 1917.
O resgate do legado teórico e político como parte das lições do processo
revolucionário é de fundamental importância em nossos dias e não apenas um
“exercício” de estudo acadêmico como gostam as cátedras “marxistas”
desvinculadas da luta de classes hoje. Nesse aspecto destaca-se o método
leninista de análise da luta de classes e de construção do partido como
instrumento de ação política para a transformação revolucionária da sociedade.
Não por acaso em pleno século XXI os charlatães do Marxismo tentam “vender” o
conceito de uma suposta revolução como sendo levantes “democráticos”
organizados pelo imperialismo contra “ditaduras” nacionalistas, como vimos
recentemente na mal chamada “Primavera Árabe”. É esta polêmica que desejamos
travar aqui a partir dos debates políticos pautados no interior do Partido
Bolchevique na Rússia de 1917 e seus reflexos na política revolucionária 99
anos depois. Os fatores históricos e sociais que fizeram possível a Revolução
de Fevereiro de 1917, prólogo da Revolução de Outubro dirigida pelo Partido
Bolchevique oito meses mais tarde, têm suas raízes fincadas nas profundas
contradições da Rússia czarista, um típico país camponês que se incorporou à
cadeia da economia capitalista mundial somente no final do século XIX, quando
os países capitalistas mais desenvolvidos da Europa e da América do Norte já
haviam ingressado na fase imperialista. O desenvolvimento capitalista da Rússia
foi favorecido por investimentos de capitais originários da França, Inglaterra
e Alemanha, que afluíram massivamente ao império dos czares entre 1880 e 1900,
possibilitando uma rápida transformação na economia e na sociedade russa.
Entretanto, o vigoroso desenvolvimento industrial que concentrou grandes
fábricas nos principais centros urbanos, se fez de tal forma que as mais
avançadas estruturas e técnicas do capitalismo coexistiam e completavam-se com
o atraso econômico no campo, onde ainda imperavam relações semifeudais (a
servidão feudal só foi abolida em 1861) e a concentração de terras nas mãos de
um punhado de latifundiários. Dessa forma, manifestavam-se na Rússia todas as
contradições características dos países capitalistas de desenvolvimento
desigual e combinado. No início do século XX a Rússia possuía a maior população
da Europa, 174 milhões de habitantes. Destes, cerca de 80% ainda viviam no
campo. A maior parte das terras estava em mãos de uma minoria de 30.000 latifundiários,
enquanto milhões de camponeses pobres viviam miseravelmente em pequenas
propriedades e outros tantos não possuíam nenhuma terra, vendo-se obrigados a
trabalhar como operários agrícolas nas terras dos latifundiários. Esta situação
condenava os camponeses à pobreza, à miséria e à fome, conduzindo à revoltas
periódicas que eram violentamente reprimidas pela autocracia czarista.
A dissolução das relações feudais no campo e o
desenvolvimento da grande indústria lançaram uma parcela significativa dos
camponeses nos centros urbanos, dando origem a um jovem e combativo
proletariado fabril de aproximadamente 10 milhões de operários; um proletariado
muito concentrado (as fábricas com mais de 1.000 operários empregavam 41,4% da
classe operária russa) que, tendo rompido bruscamente com suas velhas relações
sociais, estava aberto para as ideias revolucionárias mais avançadas. A
opressão que a autocracia czarista exercia sobre uma multidão de povos e nações
que constituíam o império russo era outro fator que alimentava as contradições
da sociedade. As lutas de libertação nacional de polacos, finlandeses,
ucranianos, letões, lituanos, muçulmanos, etc., que sofriam a opressão nacional
nas mãos da casta dominante grã-russa, tiveram um papel muito importante no processo
revolucionário russo e acertaram golpes mortais contra a monarquia czarista. O
atraso econômico engendrava também o atraso político. Em 1917 a Rússia ainda
era uma monarquia absolutista. O Estado czarista era um poder político
semifeudal, organizado fora dos padrões burocráticos dos Estados burgueses
modernos (recrutamento dos funcionários aberto a todas as classes sociais;
ideologia do Estado como autoproclamado defensor do interesse geral de toda a
população e situado acima dos interesses das classes e dos indivíduos; direito
baseado na igualdade jurídica formal entre todos os cidadãos, etc.). Era,
portanto, um Estado controlado quase que exclusivamente por burocratas
provenientes ou ligados à aristocracia nobiliárquica e em que os principais
cargos do aparelho estatal eram vedados aos membros da burguesia. Num mundo
dominado por nações capitalistas, a permanência de um aparelho de Estado feudal
sobre uma estrutura econômica já baseada em relações de produção capitalistas,
era cada vez mais inviável. Todas as classes da sociedade burguesa se colocavam
objetivamente em oposição ao regime czarista com sua burocracia estatal e a
aristocracia feudal que lhe dava sustentação.
A existência da autocracia czarista obrigava a burguesia a
colocar-se em oposição ao regime visando tomar em suas mãos a direção do Estado
e da economia. Com esse objetivo já se organizara desde 1905 no partido
democrata-constitucionalista, principal partido burguês de oposição ao
czarismo, cuja sigla KDT o tornou mais conhecido como partido cadete. Todavia,
na etapa histórica do capitalismo imperialista, a burguesia russa, como toda a
classe burguesa de qualquer país de desenvolvimento capitalista tardio, já era
politicamente incapaz de colocar-se à frente das massas para realizar mesmo as
tarefas históricas clássicas das revoluções burguesas como o fim dos
privilégios feudais, a extinção do latifúndio com a distribuição das terras
entre os camponeses pobres e a abolição do absolutismo. Dessa forma, já na
revolução de 1905 a burguesia, que inicialmente apoiou a mobilização das massas
contra a autocracia czarista, pretendendo utilizá-las para forçar o regime
czarista a promover mudanças que permitissem sua participação como força social
majoritária na direção do Estado, logo se jogou nos braços da reação quando os
operários, de armas nas mãos, levantaram suas próprias reivindicações (jornada
de 8 horas, aumento dos salários e ocupações de fábricas).
De sua parte, a classe operária russa, antes mesmo de 1905,
já dispunha de sua própria organização política, o POSDR, fundado em 1898. As
divergências que dividiram os marxistas russos entre bolcheviques e
mencheviques começaram no II congresso POSDR, em julho de 1903, em torno da
definição do conceito de militante e do tipo de organização de que necessitava
o movimento operário para lutar contra o czarismo e pela revolução. Lenin, à
frente dos bolcheviques, definia como militante do partido “todo aquele que
aceita seu programa e apoia o partido tanto materialmente como por meio da
participação pessoal em uma de suas organizações”. A concepção leninista de
partido propunha uma organização de combate, formada principalmente por
revolucionários profissionais, forjada no centralismo democrático, na
hierarquia e na disciplina consciente de seus membros; constituída por quadros
preparados por uma longa aprendizagem. Uma organização que pudesse se
apresentar com fisionomia própria diante das tendências pequeno-burguesas;
preservar a vanguarda consciente da degeneração política e ideológica e
preparar, com todos os detalhes da arte revolucionária, a vitória da revolução
proletária. Em oposição aos leninistas, os mencheviques, liderados por Martov,
consideram membro do partido “todo aquele que aceita seu programa, paga suas
cotizações e coopera regularmente no trabalho do partido, sob a direção de uma
de suas organizações”. O tipo de organização proposta pelos mencheviques
baseava-se no princípio da “ampla democracia”, refletindo a influência das
concepções pequeno-burguesas no movimento operário russo.
Para muitos antibolcheviques de hoje todo mal emana do
“centralismo democrático” (alguns revisionistas contemporâneos até tentam
escamotear sua aversão substituindo a expressão por democracia centralista),
que até se justificaria para a luta clandestina contra o czarismo, mas seria
completamente desnecessário e até nocivo nas sociedades “democráticas” atuais.
De fato, o centralismo leninista não foi pensado, principalmente e antes de
tudo, para as condições de clandestinidade sob a tirania czarista (que seguramente
influíram na necessidade de centralização da organização leninista), mas por
razões políticas fundamentadas no caráter centralizado da própria dominação do
capital e seu Estado. Sem uma centralização, sem uma vontade única, o
proletariado não poderá levar adiante a luta revolucionária, que exige vencer
um Estado centralizado. Tanto Engels em seu “Sobre a autoridade” quanto Lenin
em seu “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” destacam a disciplina do
proletariado como uma das condições para a vitória sobre a burguesia. Isto é
reconhecido por qualquer trabalhador que tenha participado de uma greve. Acatar
as decisões democraticamente tomadas majoritariamente por uma assembleia é uma
das condições para ter êxito sobre a burguesia e não por acaso, o seu inverso,
o desacato, a supressão da democracia operária e a não execução de suas
deliberações tomadas nas assembleias proletárias é a política dos burocratas
traidores que fazem o jogo do inimigo de classe. Muitos poderão reconhecer que
a disciplina é justa quando praticada de baixo para cima, mas o partido
bolchevique organizava-se de forma hierárquica de cima para baixo e aí estaria
a causa da burocratização. De fato, as coisas se processam de forma diferente
entre as organizações de massas (sindicatos, associações, etc.) e as
organizações de vanguarda (de caráter partidário). Lenin queria construir com
os setores mais avançados do proletariado o Estado maior da revolução social e,
por isto, combatia a ideia anarquista de que o partido teria leis próprias independentes
da luta de classes pelo poder e da influência da ideologia burguesa sobre as
distintas classes sociais e sobre os próprios militantes. Até que o comunismo
não dissolva as classes sociais, a lei principal que se manifesta sempre quando
se luta pelo poder estatal, é a existência de dirigentes e dirigidos, daqueles
que dão ordens e aqueles que a seguem, hierarquia que no partido é definida
pelo grau de dedicação e abnegação à luta revolucionária do proletariado.
Exatamente por isto, em um partido dinâmico, muitos dirigentes que têm sua
militância debilitada por quebra ideológica ou erros políticos de direção são
dialeticamente ultrapassados pelos que antes eram dirigidos. Todavia, querer
vencer romanticamente esta divisão elementar entre vanguarda e retaguarda com
ficções horizontalistas é pura demagogia ou utopia libertária. Significa
subordinar a parte mais avançada a mais atrasada, arriscando o caráter
revolucionário do partido.
As divergências entre bolcheviques e mencheviques
aprofundaram-se a partir de 1905 em torno da definição do caráter da revolução
russa e do papel das classes sociais no processo revolucionário. Enquanto os
mencheviques defendiam que caberia à burguesia a direção política da sociedade
após a derrota do czarismo, os bolcheviques sustentavam que o novo governo
revolucionário só podia ser produto de uma aliança do proletariado com o
campesinato. A experiência revolucionária de 1905 despertou para a vida
política até os setores mais atrasados das massas, como o numeroso campesinato
que, pouco propenso a constituir organizações políticas estáveis devido à
dispersão imposta pelas suas próprias condições sociais de existência,
encontrou um canal de expressão no partido da pequena-burguesia urbana, o
partido socialista-revolucionário. A situação revolucionária de 1905, após a
derrota na guerra com o Japão (1904-1905), foi um claro sinal, por um lado, da
incapacidade do Estado russo manter uma posição de potência internacional e,
por outro, de que a Rússia era o Estado europeu mais vulnerável às lutas
populares e onde estas estavam mais avançadas da época. A repressão sangrenta
do movimento revolucionário de 1905 permitiu salvaguardar o poder de Estado nas
mãos do Czar por mais 12 anos. Mas provocou a perda de um dos pilares fundamentais
de sustentação do Estado, ou seja, a capacidade de controle ideológico e a sua
legitimidade como poder político perante as massas exploradas. Desde o Domingo
Sangrento, o Czar perdeu sua feição sagrada diante das massas que passaram a
vê-lo como um inimigo de classe. Entre 1905 e 1917, o Estado czarista se
manteve fundamentalmente sobre o aparelho repressivo que tornava o czarismo
cada vez mais objeto do ódio popular. Dessa forma, quando eclodiu a primeira
grande guerra, abrindo uma nova crise e acendendo o estopim para que a
revolução fizesse saltar pelos ares todo o corroído edifício do Estado
absolutista, preparando as condições para a revolução proletária mundial
independente da vontade dos blocos imperialistas que impulsionaram a guerra, a
revolução russa já conhecera, nas palavras de Lenin, o seu “ensaio geral” em
1905.
A 1ª Guerra Mundial que começou em agosto de 1914, como
consequência da disputa entre as principais potências imperialistas por
mercados e por uma nova partilha do mundo colonial, promovendo a maior
carnificina humana jamais conhecida até então, embotou temporariamente a
consciência dos trabalhadores com o nacionalismo e o patriotismo belicista. Uma
onda chauvinista atingiu todas as camadas da sociedade russa, inclusive a
classe operária, que se viu afetada pela mobilização de milhões de operários e
camponeses para as tropas da frente de batalha, desarticulando temporariamente
o movimento operário. A vanguarda revolucionária e os dirigentes do partido
bolchevique se viram isolados das massas durante todo um período. Mas, apesar
do isolamento, se mantiveram firmes na defesa da derrota de ambos os blocos
imperialistas em conflito e pela transformação da guerra imperialista em guerra
civil do proletariado contra as burguesias de seus países, em defesa da
revolução proletária mundial como única saída para a humanidade diante dos
horrores da guerra imperialista. A destruição de forças produtivas se fez
particularmente insuportável sobre os países mais atrasados. Na Rússia, a
indústria de guerra devorava todos os recursos agravando a situação de miséria
das massas trabalhadoras. Aproximadamente 50% de toda a produção e cerca de 75%
da produção têxtil foram destinados a suprir as necessidades do exército. Ao
final de 1916, as tropas russas já estavam exauridas pela fome. A guerra já
custara ao país 1 milhão e 700 mil mortos, destruíra 25% da indústria e 9% da
agricultura. As derrotas na frente de combate, o baixo nível de provisões, a
desorganização dos transportes e os abusos dos oficiais acabaram por abater
completamente o moral dos soldados russos. As deserções adquiriram proporções
massivas. A escassez, a miséria, a fome e o aumento vertiginoso dos preços
faziam insuportável a situação dos operários e camponeses em todo o país,
minando a febre patriótica que contaminou a sociedade no início da guerra. A
responsabilidade por toda essa catástrofe recai sobre o Czar e a casta
dirigente do Estado. A crise social passou a se refletir no círculo dirigente
do Estado, através de intrigas palacianas que culminaram com o assassinato de
Rasputin, o sacerdote charlatão que era conselheiro e “guia espiritual” do czar
e da czarina, interferindo diretamente nas decisões de governo e que resumia em
sua pessoa toda a podridão e corrupção da autocracia czarista. A Revolução
Bolchevique foi uma consequência direta da primeira grande crise imperialista
que teve sua expressão maior e mais trágica na I Guerra Mundial. Apesar de não
ser um marxista, o rigoroso historiador Edward Hallet Carr reconhece que “A
Revolução constituiu o primeiro desafio claro ao sistema capitalista, que
alcançou seu ponto culminante na Europa no final do século XIX. Sua aparição
durante a I Guerra Mundial, e em parte como consequência desta, foi mais que
uma coincidência. A guerra descarregou um golpe mortal na ordem capitalista
internacional, tal como existia antes de 1914, e revelou sua instabilidade
inerente. A revolução pode ser considerada, ao mesmo tempo, como uma
consequência e uma causa do declínio do capitalismo” (Edward H. Carr, A Revolução
Russa de Lenin a Stalin, 1917-1929, Rio de Janeiro, Zahar, 1980).
A guerra mundial agravou a crise do Estado absolutista e
gerou uma conjuntura extremamente favorável para a derrubada do Czar Nicolau
II. Em apenas cinco dias, de 23 a 28 de fevereiro, segundo o calendário russo
(8 a 13 de março pelo calendário ocidental), a insurreição proletária pôs
abaixo a secular monarquia imperial russa. Mas em seu lugar surgiu um governo
de latifundiários capitalistas e da burguesia liberal (outubristas e democratas-constitucionalistas),
o Governo Provisório burguês de Lvov, Gutchkov e Miliukov, que nasceu da
Revolução de Fevereiro como consequência das limitações da luta espontânea das
massas. Lvov era um latifundiário e deputado da extrema direita. Miliukov era líder
do principal partido burguês, conhecido como Partido dos Democratas
Constitucionalistas ou KDT (Kadete). Gutchkov dirigia os Outubristas, que
absolutamente nada tinham a ver com a revolução de outubro de 1917, eram assim
chamados porque foram criados em apoio ao Manifesto promulgado pelo Czar em
Outubro de 1905. Lenin, que se encontrava na Suíça quando explodiu a Revolução,
analisou criteriosamente os acontecimentos através de uma série de artigos
conhecidos como “Cartas de Longe”, em que escreveu ao CC do partido bolchevique
em Petrogrado: “Todo o curso dos acontecimentos da revolução de Fevereiro-Março
mostra claramente que as embaixadas inglesa e francesa, com os seus agentes e
‘ligações’, que há muito faziam os mais desesperados esforços para impedir
acordos ‘separados’ e uma paz separada entre Nicolau II... e Guilherme II,
organizaram diretamente a conspiração, em conjunto com os outubristas e
democratas-constitucionalistas, em conjunto com uma parte do generalato e do
corpo de oficiais do exército e em especial da guarnição de Petrogrado, para
depor Nicolau Romanov”. Analisando de um ponto de vista marxista a correlação
das forças sociais na revolução Lenin afirmava: “Se a revolução venceu tão
rapidamente e – aparentemente, ao primeiro olhar artificial – de um modo tão
radical, é apenas porque, por força de uma situação histórica extremamente
original, se fundiram, e fundiram-se com uma notável ‘harmonia’, correntes
absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogêneos,
tendências políticas e sociais absolutamente opostas. A saber: a conspiração
dos imperialistas anglo-franceses que impeliram Miliukov, Gutchkov e Cia a
tomarem o poder, no interesse do prosseguimento da guerra imperialista... E,
por outro lado, um profundo movimento proletário e popular de massas (de toda a
população da cidade e do campo), com caráter revolucionário, pelo pão, pela
paz, pela verdadeira liberdade” (Cartas de Longe, 7 a 26 de março de 1917). Nos
primeiros dias de março se organizaram sovietes em todas as fábricas, bairros,
localidades e regiões. Os mencheviques e socialistas-revolucionários elegeram a
imensa maioria nos sovietes. Em essência, a influência dos mencheviques e
socialistas-revolucionários refletia o peso social da pequena-burguesia russa, sobretudo
das massas camponesas recém-despertadas para a vida política e que se
encontravam concentradas aos milhões como soldados do exército. O Partido
Bolchevique que na época contava com cerca de 40 mil militantes, embora tenha
estado na linha de frente da insurreição, estava longe de ser a força política
com maior influência de massas. Mesmo em Junho de 1917 os bolcheviques ainda
detinham apenas cerca de 10% dos delegados ao I Congresso de Sovietes de
Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia (apenas 105 do total de 1090 de
delegados eram bolcheviques).
Na noite de 27 de fevereiro, ocorreu a primeira reunião do
Soviete de Petrogrado, que criou o Comitê Executivo Central composto em sua
maioria por mencheviques e socialistas-revolucionários. O Soviete se declarou
órgão dos deputados operários e soldados e era de fato quem detinha o poder
político, colocando as tropas sob seu comando e determinando que as ordens do
Comitê da Duma (a Duma era uma espécie de Câmara de Deputados que foi criada
pelo czarismo pressionado pela revolução de 1905) só seriam cumpridas se não se
chocassem com as do Soviete. Porém, dois dias depois, os membros mencheviques e
socialistas revolucionários do Comitê Executivo do Soviete concluíram um pacto
com a Duma, avalizando a formação de um Governo Provisório composto por
partidos monarquistas e burgueses, presidido por Lvov. Contrariando uma
resolução do Comitê Executivo do Soviete de Petrogrado, adotada na tarde do dia
1º de março, que decidira não indicar representantes para compor o governo
burguês, a direção do soviete apresenta o nome de Alexandre Kerensky, um
parlamentar de um partido pequeno-burguês conhecido como Trudovique que havia
sido eleito em 1912 para a Duma para compor este primeiro governo provisório
como Ministro da Justiça. Os Trudoviques nasceram, em 1907, de uma ruptura da
ala direita do Partido Socialista Revolucionário (SR). Os SRs compunham um
partido radical pequeno burguês, camponês, herdeiro dos Narodniks que
empregavam métodos de terrorismo individual contra o czarismo. Outro
“socialista” indicado ao primeiro ministério provisório foi o menchevique N. S.
Tchkheidze. Dessa maneira, mais uma vez na história, os trabalhadores que
espontaneamente realizaram a revolução de fevereiro entregaram voluntariamente
o poder à burguesia. Assim, a Revolução de Fevereiro desembocou na constituição
de um governo burguês fortemente apoiado nas organizações de massa, os
sovietes, através de suas direções conciliadoras.
Após a queda do Czarismo, a situação peculiar na Rússia
consistia em que, sob a política dos mencheviques e
socialistas-revolucionários, a Revolução de 27 de Fevereiro havia dado o poder
à burguesia. Faltava ainda ao proletariado o grau de consciência e organização
necessárias para tomar todo o poder em suas próprias mãos, passando por cima de
suas direções reformistas tradicionais. Forjar-se como o instrumento que vai
possibilitar aos trabalhadores preencher esta carência política é a grande
contribuição à história da luta de classes que os bolcheviques viriam a dar.
Não antes sem uma ferrenha luta interna promovida por Lenin contra a posição
dos dirigentes locais do partido, Stalin, Kamenev, Olminsk, Kalinin e Muranov
de apoio crítico ao Governo Provisório, de fazer-lhes exigências políticas por
pão, paz e terra, mantendo inclusive conversações para a reunificação com os
mencheviques. A partir de suas “Cartas de Longe”, como vimos, Lenin defendeu
que a política correta dos bolcheviques deveria ser denunciar os líderes
mencheviques e socialistas-revolucionários como conciliadores e bajuladores da
burguesia. Em um segundo documento intitulado “Sobre as tarefas do proletariado
na presente revolução” que ficou conhecido como “Teses de Abril”, Lenin combate
a linha colaboracionista dos dirigentes bolcheviques locais: “Nenhum apoio ao
Governo Provisório. Explicar a completa falsidade de suas promessas, sobretudo
sobre a da renúncia das anexações. Desmascarar este governo, que é um governo
de capitalistas, invés de propagar a inadmissível e ilusória ‘ exigência’ de que
deixe de ser imperialista” (7 de abril de 1917). Nas “Teses” Lenin defende a
realização imediata de um Congresso do Partido para modificar seu programa
mínimo, o qual considera antiquado; a reformular as posições sobre o
imperialismo, a guerra imperialista e, sobre o Estado, apontando que a
República soviética seria a versão mais acabada de um Estado que tem como
exemplo a Comuna de Paris. Ele reivindica também a substituição do nome do
Partido de “Social democratas (bolchevique)” para Comunista. Para dobrar os
setores conciliacionistas da direção bolchevique em favor da ruptura
revolucionária com o governo provisório, Lenin teve que recorrer às bases do
partido, que aprovaram toda a linha política das Teses de Abril. Como parte
desse combate, conseguiu aproximar do Partido Bolchevique, a organização
Inter-bairros de Petrogrado. Este grupo, vinculado a Trotsky, havia tomado
postura a favor do poder soviético, mas a política implementada por Kamenev e
Stalin no partido, o tinha dissuadido, uma vez que desde a Revolução de 1905
defendia que somente a revolução proletária na Rússia poderia realizar as
tarefas democráticas burguesas e iniciar as tarefas de construção do
socialismo. Depois de um longo périplo desde o Canadá à Escandinávia, Trotsky
regressou à Rússia em 5 de maio. De imediato se integra na organização
Inter-bairros, onde militam vários mencheviques internacionalistas, Yureniev e
Karajan, antigos bolcheviques e, no geral, os militantes que se viram
vinculados a ele há vários anos: Ioffe, Manuilsky, Uritsky, da redação do
Pravda (A verdade) e Pokrovsky, Riazánov e Lunacharsky do Nashe Slovo (Nossa
Palavra). O partido bolchevique de 1917, o partido comunista cuja constituição
defendia Lenin em abril, em torno dos “melhores elementos do bolchevismo”, nasceu
da confluência, no seio da corrente bolchevique, das pequenas correntes
revolucionarias independentes que integram tanto a organização Inter-bairros
como as numerosas organizações socialdemocratas internacionalistas que, até
então, haviam ficado à margem do partido de Lenin.
Lenin definiu como característica peculiar da Rússia após a
Revolução de Fevereiro, a dualidade de poderes entre o Governo Provisório e o
Soviete de Petrogrado. “Esta dualidade de poderes manifesta-se na existência de
dois governos: o governo principal, autêntico e efetivo da burguesia, o governo
provisório de Lvov e companhia, que tem em suas mãos todos os órgãos do poder,
e um governo suplementar, secundário, de controle, personificado pelo Soviete
de deputados operários e soldados de Petrogrado, que não tem nas suas mãos os
órgãos do poder de Estado, mas se apoia diretamente na indubitável maioria
absoluta do povo, nos operários armados e soldados” (Teses de Abril). Os
sovietes de operários, que apareceram pela primeira vez durante a Revolução de
1905, ressurgiram em Fevereiro de 1917 como forma de organização operária de
base, com um grau elevado de espontaneidade, onde o proletariado russo se
organizava autonomamente por zona residencial e/ou por fábrica. Assim, ocorria
uma unificação do poder econômico e político em uma nova instituição social,
onde os operários elegiam os seus delegados diretamente. Estes poderiam ter
seus mandatos revogáveis a qualquer momento e expressavam a vontade das
assembleias e plenárias operárias de base. Os sovietes representavam um poder
de classe paralelo ao poder político oficial do governo da burguesia e dos
partidos conciliadores (mencheviques e socialistas-revolucionários). Obviamente
estes dois poderes não poderiam coexistir indefinidamente. A dualidade de
poderes era característica de uma situação revolucionária que não se definira,
revelando um impasse na luta de classes. Um dos poderes teria que suprimir o
outro. Visto que sob essa dualidade de poderes a burguesia não tinha forças
para reprimir e desarmar os operários e soldados revolucionários, a Rússia era
então o país mais democrático dentre as nações beligerantes. Nessas
circunstâncias, segundo Lenin, a tarefa central dos bolcheviques era realizar
um paciente trabalho de crítica e esclarecimento dos erros dos partidos
pequeno-burgueses, socialista-revolucionário e menchevique; de preparação e
coesão dos elementos genuinamente proletários, comunistas; de libertação do
proletariado da embriaguez pequeno-burguesa generalizada. Apontando que as contradições
da dualidade de poder têm que ser resolvidas em favor do poder proletário,
Lenin defende neste momento a consigna de “Todo o poder aos Sovietes” como
instrumento de mobilização e conscientização das massas. Assim foi a Revolução
de Fevereiro na Rússia que abriu caminho para o Outubro de 1917 e nos legou
lições preciosas que devemos aplicar em nossos dias!
OS FALSOS “FEVEREIROS” DE HOJE CELEBRADOS PELOS MORENISTAS E
O IMPERIALISMO
Quando em 2011 as supostas “revoltas populares” eclodiram no
mundo árabe, precisamente na Tunísia e Egito, a esquerda revisionista bateu
todos os recordes possíveis de delírios programáticos e oportunismo político em
toda linha, capaz até de envergonhar o finado Nahuel Moreno nas “profundezas de
seu túmulo”. Seus discípulos e antigos algozes radicalizaram muito sua “teoria”
das “revoluções democráticas”, uma versão revisionista e requentada da
revolução por etapas, defendida apaixonadamente pelos velhos stalinistas e
maoístas. É bom lembrar que o próprio Moreno sempre apresentou sua
“contribuição” teórica ao marxismo com muita discrição e por muitas vezes
retardatariamente. Foi assim que, por exemplo, os militantes morenistas no
Brasil só vieram a saber dois anos depois que no Brasil ocorrera, segundo a
imaginação fértil de Moreno, uma autêntica revolução democrática no ano de 1984
em meio a campanha multitudinária das Diretas Já. Na Argentina as mobilizações
que forçaram a renúncia da Junta militar logo após a guerra das Malvinas também
foram consideradas um genuíno exemplo de "Revolução de Fevereiro"...
que nunca alcança o seu "Outubro". Contudo, neste momento no mundo
árabe a "grande família" morenista nem precisou esperar por um
"Outubro" para classificar os protestos de rua no Egito como:
"uma autêntica revolução! Popular, operária, estudantil, de massas que se
baseou no método de luta insurrecional... uma revolução socialista por seu
conteúdo, ainda que sem uma direção organizada neste sentido." (extraído
do site do Movimento Revolucionário em 14/02/2011). Vejamos que o MR, um racha
ultra morenista do PSTU, anunciou na época a segunda revolução socialista
ocorrida neste planeta, a primeira, é claro, foi a Revolução Russa de 1917, a
única diferença para estes palhaços seria a falta de "uma direção
organizada". Muito mais do que uma idiotice teórica, estes morenistas
concentram toda a caracterização que está sendo elaborada pela esquerda
revisionista acerca do processo político que atravessa o Egito e Tunísia. O
MRT/LER que se recusa a reivindicar o legado morenista também navega na mesma
correnteza, sustentando que "Mubarak foi derrubado de forma
revolucionária". O MRT avançava no delírio oportunista e tentou polemizar
com os que considera "céticos" por não embarcarem na absoluta
ausência de critérios revolucionários. Em um artigo assinado por Thiago de Sá
assinala: "A queda revolucionária de Mubarak significa também um tapa na
cara de todos os céticos, o processo revolucionário mostra a capacidade de todo
o povo explorado" (site da LER, 12/02/2011). Os morenistas "autênticos"
da LIT, é óbvio, regem a orquestra revisionista cantando loas ao "grande
triunfo da revolução no Egito". Para não ficarmos repetitivos e cansativos
vale registrar a posição de altamiristas e loristas (PO e POR). Os primeiros
defenderam que a revolução no Egito e Tunísia chegou a adentrar em sua
"segunda fase", ou seja, a "socialista", já os loristas do
POR brasileiro primeiro alertaram que a "revolução no Egito corre
perigo" para depois concluírem pateticamente que a revolução pariu um
"golpe militar contrarrevolucionário no Egito", ou seja, o delírio
político transitou da revolução das massas ... a um golpe pinochetista na
cabeça destes idiotas!
O ilusionismo da realidade, um caso típico de embuste
programático que marca o revisionismo do século XXI não passa de uma inútil
tentativa de desconsiderar a etapa reacionária da luta de classes em escala
mundial. Na Tunísia ou no Egito obviamente não ocorreu nenhuma revolução,
sequer "democrática" ou de "fevereiro" como preferirem no
catálogo dos revisionistas naqueles dias. Na devastada Líbia obviamente nem
cabe esse debate! O ascenso inicial de massas esteve muito longe de abalar o
conjunto das instituições do regime político, e sequer assumiram um nítido
caráter anti-imperialista. As incipientes “revoltas populares” no mundo árabe
contra os velhos tiranos pela ausência de uma direção classista e norte
socialista, conseguiram no máximo forçar a transição do governo de turno dentro
da mesma estrutura social e econômica do Estado capitalista e suas instituições
burguesas. O imperialismo ianque acompanhou de perto este processo, que em
momento algum saiu do controle dos seus planos militares para a região, como
vemos o desastroso resultado da “Primavera Árabe”, que pariu desde protetorados
da OTAN como na Líbia e até ditaduras militares como é o caso do Egito!
Sem alimentar as falsas ilusões delirantes e oportunistas é
necessário afirmar vigorosamente que sem a construção de um partido operário e
revolucionário de massas nenhuma revolução socialista ocorrerá e tampouco sem a
existência de uma ampla vanguarda anti-imperialista nenhuma "revolução
democrática" triunfará no mundo árabe ou em qualquer parte do planeta.
Somente com a existência de organismos de poder das massas, dotadas de uma
estratégia militar, será possível levar a frente uma verdadeira Revolução de
Fevereiro, que possa significar realmente a ante-sala da revolução social. A
tentativa de apresentar novas “fórmulas” de revolução não passou de mais um
engodo da “família” revisionista para fazer retroceder ainda mais a consciência
do proletariado mundial, tanto que hoje os países que foram palco de tais
“rebeliões” estão mergulhados na barbárie social ou submetidos a ditaduras
militares assassinas!