quarta-feira, 30 de maio de 2018

HÁ 16 ANOS MORRIA MÁRIO LAGO: 
O ÚLTIMO “STALINISTA BOÊMIO”


Mario Lago, ator, compositor, radialista, poeta, autor teatral foi um militante comunista, na verdade um stalinista de vida boêmia, talhada pelas músicas, os cabarés, enfim foi produto do ambiente malandro da Lapa carioca onde nasceu e da influência política da vitoriosa Revolução de 1917, que iria marcar os debates políticos e culturais de sua adolescência. Também neste caso, a exceção confirma a regra e nem por esses ricos traços culturais Lago rompeu com a política de colaboração de classes do velho Partidão. Ao contrário, seguiu-a disciplinadamente apesar de toda a “heterodoxia” pessoal que acompanhou sua vida, quando morreu em 30 de maio de 2002, há 16 anos. Um tempo vivido em sua plenitude política, artística e boemia. Não foi casual esse pulsar de vida pelo simples fato de que nascera no centro do furacão político da luta de classes e cultural do país nas décadas de 20 a 50. Nasceu no Rio de Janeiro, capital federal, em 26 de novembro de 1911, na histórica Rua do Resende, bairro da Lapa, região à qual confluía toda a boemia carioca e a nata da “malandragem”. Carioca típico, absorveu profundamente a verve de sua época, a de um país que emergia para a industrialização capitalista, a economia que aos poucos suplantava a monocultura cafeeira. Por todos os poros emergiam os aspectos de uma nova cultura voltada para consumo de massa, tais como a música que desce da marginalidade dos morros para a cidade, ou seja, o samba outrora criminalizado rapidamente se populariza através de grandes menestréis como Chiquinha Gonzaga – a grande precursora desta nova “elite” intelectual que compôs já em 1899 a marchinha “Ô abre alas” – Noel Rosa, Mario Lago, Cartola, Pixinguinha, Lamartine Babo e muitos outros. Tratava-se da ascensão de uma nova classe média urbana gerada pelo crescente processo de industrialização que tinha como canal de expressão de suas ideias e novos costumes os cafés, os botequins e cabarés, nos quais eram “elaborados” (vividos) e discutidos entre a intelectualidade novos padrões estéticos e comportamentais.

O BAIRRO DA LAPA: “O CHÃO DE TODOS OS CAMINHOS”

No final do século XIX e as quatro primeiras décadas foram as que marcaram a formação cultural do país e uma nova forma de se atuar sobre a realidade política cuja expressão é a fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922 ainda sob o calor efervescente da Revolução Bolchevique na Rússia em 1917, em pleno esgotamento do modelo econômico agro-exportador cafeeiro. Além destes fatores “externos”, os elementos familiares foram cruciais para a formação política na infância e juventude de Mario Lago. Seu avô fora músico e militante anarquista que combateu ao lado das tropas de Garibaldi na Itália. Desde cedo, aos 12 anos esteve às voltas com sua primeira experiência política, ao assistir da janela de sua casa a insólita e macabra execução de um opositor do governo Arthur Bernardes, o engenheiro Conrado Niemeyer, espancado até a morte na sede da Polícia – que se localizava em frente a sua casa – comandada pelo sinistro general Fontoura que se não torturava barbaramente seus opositores enviava-os à terrível prisão Clevelândia na selva amazônica. Em 1923 entra no Colégio Pedro II, onde sofrera a influência de outro anarquista, o professor de português José Oiticica. Mario Lago, em seu livro autobiográfico “Na rolança do tempo” afirma que como fator de formação política “a Lapa foi o chão de todos os meus passos. Na busca de caminhos e no encontro de atalhos que descaminham, na primeira ânsia e no último nojo, no último desencanto e na primeira afirmação”. Cheio de desejo de viver, escreveu certa vez acerca do envelhecimento e a morte: “Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo, nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Um dia, a gente se encontra”.

A ideia da subversão sempre o acompanhou e a vida boemia o fascinava desde criança, por influência de seu pai, músico conservador que fazia apresentações também nas “casas suspeitas”. Apesar da desaprovação do pai, aos 15 anos já frequentava os cabarés da Lapa, convivendo lado a lado com “malandros” e contraventores, num misto de curiosidade e de libertação do conservadorismo da família e da sociedade oligarca. Nas suas idas e vindas, no Cabaré Royal Pigalle, conheceu Cecy, o grande amor de Noel Rosa, que irascível, compôs a célebre “Pra que Mentir”. Mario Lago, então, asseverou acerca da “traição” de Cecy “... que às vezes me acarinhava as noites tendo o pensamento em Noel”.

Naquela época, sob a égide do estado de sítio do governo Arthur Bernardes (1922 a 1926) e a ditadura civil de Washington Luís (1926 a 1930), e depois sob o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 a 1945), a boemia converteu-se no refúgio da intelectualidade, o sopro de vida dos artistas e dos opositores do regime. Artistas populares (Orlando Silva, Carlos Galhardo, Aracy de Almeida, Francisco Alves etc.) aqui frequentemente se encontravam com os chamados eruditos do quilate de Villa Lobos, Portinari...

Ao adentrar a década de 30, Mario Lago ingressa na faculdade de direito na qual conhece importantes dirigentes do PCB, Benigno Rodrigues Fernandes e Francisco Mangabeira que logo lhe recrutam para o “Socorro Vermelho”, um grupo de apoio aos presos políticos. Aqui começa a sua militância política comunista no mundo artístico. Na segunda metade dos anos 40 intelectuais e artistas do PCB respondiam às orientações do stalinismo em nível internacional, ao modelo estético do “realismo socialista”, o qual pretendia produzir uma arte “genuinamente” proletária, daí a sua “proximidade” com o samba no Brasil.

LAGO, O PCB E A TESE DA REVOLUÇÃO POR ETAPAS: EM DEFESA DA BURGUESIA NACIONAL “PROGRESSISTA”

A predileção pela boemia ainda acompanha Mario Lago durante um bom período, tanto é verdade que as mais bem-sucedidas canções foram compostas entre os anos 30 e 40 e deixou sua marca indelével na MPB. Tem como parceiro Custódio Mesquita nas marchas de carnaval “Menina, Eu Sei de Uma Coisa” (1935), as peças teatrais “Sambista da Cinelândia” (1936) e “Mamãe eu quero” (1937). Em 1940, em parceria com Roberto Roberti, cria “Aurora”, imortalizada na voz de Carmen Miranda. Dois anos depois, compõe junto com Ataulfo Alves o samba “Ai, que Saudade da Amélia”, na verdade um libelo à mulher simples (a lavadeira que trabalhava na casa de Aracy de Almeida) e pobre disposta a qualquer sacrifício para o bem de seu companheiro ou a qualquer pessoa que a ela recorria, diferentemente das “madames” exigentes, como diz a letra: “Você só pensa em luxo e riqueza/Tudo o que você vê, você quer/Ai, meu Deus, que saudade da Amélia/Aquilo sim é que era mulher/Às vezes passava fome ao meu lado/E achava bonito não ter o que comer”. A convite de Oduvaldo Vianna começa a trabalhar na Rádio Pan-Americana em São Paulo, mas ficou pouco tempo, voltando para o Rio, atua na Rádio Nacional da qual fora diretor, sendo responsável pela disseminação em massa das radionovelas. Participou ainda de vários filmes de cinema.

No entanto, o stalinismo estava longe de se espraiar por estes terrenos. Nos anos 50, como resultado programático do stalinismo em nível mundial, o militante comunista devia adotar um abstencionismo de tipo “monástico” em relação à vida social, como exemplo a ser seguido, um paradigma essencialmente moralista pequeno-burguês. Na realidade, isto ocultava uma mácula que o PCB sempre carregou, a sua adaptação aos regimes burgueses de plantão, pois boemia era sinônimo de “marginalidade”. Foi assim durante a curta fase de legalidade (1945 a 47) durante o governo Vargas, chegando ao ponto de na sua II Conferência Nacional do PCB, em 1943, na qual Prestes fora eleito Secretário-Geral, o Partido Comunista aprovar a tese da “União Nacional”, que consistia em total apoio ao governo de Vargas, razão pela qual os stalinistas voltaram as suas forças para as eleições parlamentares, elegendo 14 deputados federais e um senador, Luiz Carlos Prestes. Anos depois apoiaram de mala e cuia a chapa Juscelino-Jango nas eleições de 1955 e, ulteriormente, à campanha presidencial de Henrique Batista Duffles Teixeira Lott (o Marechal Lott) e para Vice-Presidente, João Goulart em 1960.

Contudo, foi no período do governo João Goulart, com o claro esgotamento do nacional desenvolvimentismo e, paradoxalmente, no pós-golpe militar de 1964 que o PCB mais se adaptou ao regime político. Isto se deve à velha política stalinista do PCB, que tem como móvel programático a negação da necessidade da revolução proletária e a busca interminável de uma aliança com um setor “progressista” da burguesia nacional (a linha etapista da revolução nacional e democrática, de caráter anti-imperialista e antifeudal, aprovada desde seu III Congresso (29/12/1928 a 4/01/1929), o colocou sempre a reboque de alguma fração da burguesia nacional, à espera de que esta pusesse em prática o seu programa nacionalista. Esta “esperança” concentrava-se em João Goulart, o que fez com que o partido após o golpe de 64 adentrasse em profunda crise, estilhaçando-se em várias outras organizações que decidiram pela luta armada contra a ditadura militar (VPR, ALN, PCBR, Colina, PCdoB, VAR-Palmares, MR-8 etc.).

“COMPANHEIROS DE VIAGEM” COOPTADOS PELA REDE GLOBO: “O MELHOR PATRÃO DO MUNDO”

O processo de industrialização via penetração do capital estrangeiro deveria avançar, para o quê a ditadura militar cumprira papel fundamental, qual seja, a de garantir a acumulação capitalista para a burguesia e os grandes grupos estrangeiros que ora invadiam o país. Por isto, os opositores deveriam ser eliminados, os responsáveis pela disseminação da opinião pública progressista se não mortos, exilados, ou então cooptados pelo regime que se erguia sob os cadáveres dos heróicos militantes de esquerda. Eis que neste período Mario Lago começa a tomar gosto pela televisão (desde meados de 1954 participa do programa “Câmera Um” na Tv Rio). Nos primeiros dias de abril de 1964 é preso em sua casa, ficando encarcerado por quase dois meses por ter dirigido a greve dos radialistas cariocas, acaba sendo demitido da Rádio Nacional, período por que passa sérias dificuldades financeiras.

Em 1966, com o aporte da ditadura militar para favorecer o crescimento da Rede Globo, o “comunista” Mario Lago ganha seu primeiro papel nesta emissora. Fora ainda preso algumas vezes após a decretação do AI-5. Neste período atuou no filme de Glauber Rocha “Terra em Transe” (1967). Nos anos 70, a Globo passa a investir massiva e “industrialmente” nas telenovelas às quais Mario Lago já se encontra totalmente integrado, a tal ponto que declara sem nenhuma vergonha de quem realmente se vendeu: “Estou diante de uma realidade. Não adianta bancar D. Quixote e ficar procurando o moinho de vento. É preciso compreender que televisão é um instrumento de poder nas mãos da classe dominante. E a classe dominante tem seus princípios, seus paradigmas. Disso, ela não se afasta. O Roberto Marinho, para mim, é o melhor patrão do mundo” (Mário Lago – Década a década, Isa Cambará, 2011). Segue-lhe o exemplo, toda uma camada de intelectuais ligados ao PCB como Jorge Amado e Dias Gomes, este contratado não por coincidência, pelo mafioso Boni para escrever telenovelas, gênero que ajudou a difundir e popularizar na TV brasileira. Todos cooptados pelo regime, assimilados e neutralizados pela Rede Globo, nada mais faziam do que cumprir a resolução contrarrevolucionária do PCB de não enfrentar frontalmente o regime militar, isolando a estratégia política e militar das organizações que optaram pela guerrilha urbana.

A política stalinista não impunha a necessidade de conspirar contra o Estado burguês, devido à crença na via de desenvolvimento pacífico para o socialismo. Portanto, o PCB na década de 70, tem como base programática a via da “Constituição com João”, isto é, a via da negociação com os militares genocidas. Tal política levou a uma profunda desmoralização do PCB diante da vanguarda que enfrentava a ditadura com elementos mais classistas e radicalizados. Desta dissensão do movimento operário iria surgir o Partido dos Trabalhadores como uma concessão do regime militar vigente. Neste contexto, Mario Lago fazia parte da cepa de “intelectuais comunistas” que se integraram à abertura planejada, lenta e gradual, idealizada pelo general Golbery do Couto e Silva. Às vésperas de sua morte, o amigo e parceiro de boemia de Ataulfo Alves, rendeu-se “aos poderosos”, como gostava de se reportar acerca da burguesia quando jovem. Tornou-se muito mais conhecido do “grande público” por atuar em novelas do que por suas qualidades literárias ou autor teatral/musical. Desde a “Nova República” de Sarney, dava efusivas declarações defendendo a democracia dos ricos como valor universal. Participou de novelas que fizeram muito sucesso: Selva de Pedra”, “O Casarão”, “Nina”, “Brilhante”, “Elas por Elas”, “Barriga de Aluguel”, “Dancing Days”, “Pecado Capital” e a última foi “O Clone”.

A ARTE COMO PARTICIPAÇÃO CONSCIENTE E ATIVA NA PREPARAÇÃO DA REVOLUÇÃO PROLETÁRIA

“A revolução comunista não teme a arte” já nos ensinava o velho bolchevique Leon Trotsky no “Manifesto por uma arte independente”. A verdadeira arte é aquela que se esforça para expressar as necessidades interiores do homem e da humanidade. Por isso ela “tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade”. Mas para que este ensinamento vingue é necessário que o artista compreenda que seu lugar situa-se num patamar além, apaixonadamente cimentado à causa do Homem e à sua inabalável fidelidade aos princípios da revolução proletária. O combate de Trotsky por uma arte revolucionária foi contra os moralistas pequenos burgueses do stalinismo que reproduziam nada mais do que a velha cultura oligarca da burguesia monopolista.

Evidentemente que dentro desta perspectiva revolucionária, Mario Lago não se enquadrava, pois desempenhara um papel bastante limitado estando preso às orientações programáticas contrarrevolucionárias do “Partidão” e refém dos governos burgueses. O stalinismo defendia, ao mesmo tempo, paradigmas moralistas segundo os quais os militantes comunistas deveriam seguir um abstencionismo de tipo “monástico” como atitude de vida, cujos efeitos são sentidos até hoje na militância de esquerda no país. Este é o resultado do não enfrentamento direto com o regime político vigente, quer seja sob a forma de ditadura, quer sob a “democracia” dos ricos ou, sobretudo, à vergonhosa capitulação à Rede Globo por parte de seus militantes intelectuais.

Em oposição ao paradigma “monástico” imposto pelo stalinismo desde a década de 50, como genuínos marxistas, reivindicamos a trajetória “boêmia” de Mario Lago, como fonte inspiradora de vida de uma época em que pulsavam os novos elementos de nossa cultura que, sobre o esplendoroso “chão da Lapa”, ao lado de incontáveis artistas e intelectuais, se batia contra o arcaísmo oligarca. No dia 20 de maio de 2002, finalmente Mario Lago teve seu encontro com o tempo! Ambos “romperam” o acordo que durou 91 anos.

Hoje em dia, nesta época de barbárie cultural imposta pelo imperialismo sobre todos os povos do planeta, somente a revolução socialista através da violência revolucionária poderá erigir um novo modo de produção de uma economia centralizada. Porém, a genuína arte nascida das cinzas da velha sociedade, “para a criação intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual... a independência da arte – para a revolução; a revolução – para a liberação definitiva da arte” (“Manifesto por uma arte independente”).