NOS DUZENTOS ANOS DO NASCIMENTO DE NOSSO MAIOR MESTRE: UM
BREVE ENSAIO DA GÊNESE DO PROGRAMA DE MARX SOBRE A ECONOMIA CAPITALISTA
Em homenagem ao bicentenário do nascimento do maior mestre
do proletariado mundial, Karl Marx, este artigo procura reconstruir
"modestamente" os estudos de economia política que nosso cânone
revolucionário realizou em Paris, Manchester e Bruxelas entre 1843 e 1847 e que
culminaram na publicação de "A miséria da filosofia", considerando
historicamente o destino político e pessoal de Marx durante as revoluções de
1848 e o primeiro período de seu posterior exílio em Londres.Também nessa época,
ele consolidou sua convicção de que uma nova revolução social só poderia
surgir a partir de uma crise econômica mundial. Entretanto a economia
política não foi a primeira paixão intelectual de Marx, tratava-se de uma
disciplina que acabava de surgir na Alemanha de sua juventude e seu interesse
por ela só apareceu depois de diversos outros assuntos. Nascido em Trier em
1818, numa família de origem judaica, Marx iniciou sua vida acadêmica em 1835
estudando direito nas universidades de Bonn e Berlim. Em seguida, interessou-se
pela filosofia (particularmente pelo hegelianismo dominante na época) e acabou
se graduando na Universidade de Jena em 1841, com a tese "A diferença
entre as filosofias Demócrita e Epicurea da Natureza". Ele decidiu, então,
iniciar uma carreira acadêmica, mas a filosofia de Georg Wilhelm Friedrich
Hegel deixou de ter apoio oficial quando Friedrich Wilhelm IV subiu ao trono na
Prússia e Marx, tendo sido membro da Juventude Hegeliana, teve de mudar de
planos. Entre 1842 e 1843 ele se dedicou ao jornalismo, cobrindo assuntos
contemporâneos, e trabalhou para o "Rheinische Zeitung", o diário
da cidade de Colônia (Alemanha) do qual ele logo se tornou o jovem editor
chefe. Entretanto, pouco após ter aceitado o posto e começado a publicar seus
próprios artigos sobre questões econômicas, embora apenas em seus aspectos
legais e políticos a censura atacou o jornal e o obrigou a pôr fim na
experiência, “retirando-se do palco público para os estudos”. Ele então
prosseguiu com seus estudos sobre o Estado e as relações legais (áreas nas
quais Hegel era uma autoridade reconhecida) e em 1843 escreveu o manuscrito que
foi postumamente publicado como "Crítica da filosofia do direito de
Hegel", no qual desenvolveu a convicção de que a sociedade civil formava
a base real do regime político, apresentando suas primeiras reflexões sobre a
importância dos fatores econômicos na formação da totalidade das relações
sociais. Marx iniciou então um “estudo crítico rigoroso da economia
política”, apenas depois de se mudar para Paris. A partir desse momento, suas
reflexões, que haviam sido basicamente de uma natureza filosófica, histórica
e política, se voltaram para a nova disciplina que constituiria o cerne de sua
pesquisa futura. De fato, na universidade Marx havia adquirido o hábito de
compilar resumos de obras, frequentemente acompanhados por reflexões que elas
lhe sugeriam. Os chamados "Manuscritos de Paris" são especialmente
interessantes. Ao mesmo tempo em que fazia esses estudos, Marx fez anotações
em três cadernos que seriam publicados postumamente como "Manuscritos
econômico-filosóficos de 1844", no qual ele dá atenção especial ao
conceito de trabalho alienado. Em direção oposta dos principais economistas e
do próprio Hegel, Marx viu esse fenômeno por meio do qual a produção do
trabalhador se opõe a ele como “algo estranho, como um poder independente do
produtor” e não como uma condição natural ou imutável, mas como
característica de uma estrutura específica de relações sociais: O modo
capitalista de produção e o trabalho assalariado. Algumas das pessoas que
visitaram Marx nesse período dão testemunho da intensidade do seu ritmo de
trabalho. O jornalista radical Heinrich Bürgers escreve no final de 1844:
“Marx iniciou investigações profundas no campo da economia política com um
projeto de escrever uma obra crítica que iria refundar a ciência econômica”.
Entusiasmado com a esperança de um levante social iminente, Friedrich Engels,
que conheceu Marx em Paris no verão de 1844 iniciando com ele uma relação de
amizade e uma solidariedade teórico-política que duraria pelo resto de suas
vidas, insistiu na primeira carta de uma correspondência que duraria quarenta
anos, que Marx publicasse seus textos econômicos o mais rápido possível:
“Tome providências para que o material que você coletou seja publicado logo.
Já está mais do que na hora!” (Engels a Marx, início de outubro de 1844). Mas
o sentimento de inadequação que Marx tinha em relação ao seu conhecimento o
impediu de completar e publicar seus manuscritos. Entretanto, ele escreveu com
Engels "A sagrada família", uma tirada polêmica contra Bauer e
outras figuras do movimento da esquerda hegeliana do qual Marx havia se afastado
em 1842. Tendo publicado esse trabalho, Engels lhe escreveu novamente no
início de 1845, insistindo para que o amigo completasse o trabalho em
preparação. Mas a insistência foi inútil. Marx ainda sentia a necessidade
de continuar seus estudos antes de dar forma final aos rascunhos que havia
escrito. De qualquer modo, ele estava certo de que logo poderia publicar e no
dia 1o de fevereiro de 1845 , depois de ter sido expulso da França por ter
colaborado com o "Vorwärts!", um jornal publicado em alemão por trabalhadores,
ele assinou um contrato com o editor Karl Wilhelm, da Darmstadt, para a
veiculação de um trabalho em dois volumes a ser intitulado “Crítica da
política e da economia política”. Em fevereiro de 1845 Marx se mudou para
Bruxelas, onde conseguiu permissão para fixar residência desde que “não
publicasse nada sobre a situação política atual”. Ele permaneceu ali até
março de 1848 com sua esposa Jenny von Westphalen e sua primeira filha, Jenny,
nascida em Paris em 1844. Durante esses três anos, especialmente em 1845, ele
progrediu de modo frutífero em seus estudos de economia política. Em março
de 1845 Marx iniciou o trabalho em uma crítica, que nunca chegou a completar,
do livro do economista alemão Friedrich List sobre “o sistema nacional de
economia política”. Ao mesmo tempo, Marx aprofundou-se em questões associadas
à maquinaria e à indústria de larga escala. Já em Manchester, Marx examinou
a vasta literatura em inglês sobre economia, uma tarefa essencial para o livro
que tinha em mente. Compilou nove cadernos de citações, os "Cadernos de
Manchester", nos quais novamente as principais referências eram de
manuais de economia política e livros sobre a história da economia. Ainda na
capital belga, além dos estudos sobre economia, Marx trabalhou em outro
projeto que considerou necessário diante das circunstâncias políticas. Em
novembro de 1845 ele teve a ideia de escrever com Engels, Joseph Weydemeyer e
Moses Hess uma “crítica da moderna filosofia alemã como exposta por seus
representantes, Feuerbach, Bruno Bauer e Stirner, assim como do socialismo
alemão como exposto por seus diversos profetas”. O texto final, foi publicado
postumamente com o título de "A ideologia alemã". Para rastrear o
progresso da “Economia” em 1846, é novamente necessário analisar as cartas de
Marx a Leske. Em agosto ele informou ao editor que “o manuscrito do primeiro
volume” já estava praticamente pronto “há muito tempo”, mas que ele não
“queria publicá-lo sem uma nova revisão, tanto na questão do conteúdo
quanto do estilo”. Ele continua: “É claro que um escritor que trabalha sem
parar não pode, no final de seis meses, publicar exatamente aquilo que
escreveu seis meses antes”. Entretanto, Marx procuraria concluir o livro no
futuro próximo: “A versão revisada do primeiro volume estará pronta para
publicação no final de novembro. O segundo volume, de natureza mais
histórica, virá logo depois”. Mas esses relatos não correspondiam ao estado
real de seu trabalho, já que nenhum de seus manuscritos poderia ter sido
descrito como “praticamente pronto” na medida em que o editor ainda não havia
recebido nem sequer o primeiro esboço no início de 1847, decidindo assim
anular o contrato. Esses atrasos constantes não deveriam ser atribuídos a
qualquer tipo de descuido da parte de Marx. Ele nunca abandonou a atividade
política nesses anos e na primavera de 1846 promoveu o trabalho do “Comitê de
Correspondência Comunista”, cuja missão era organizar uma aliança entre as
várias ligas de trabalhadores na Europa. Entretanto, o trabalho teórico
sempre foi sua prioridade, como testemunham as pessoas que o visitavam
regularmente nesse período. Suas notas de trabalho e seus escritos publicados
fornecem provas adicionais de sua diligência. Entre o outono de 1846 e
setembro de 1847 ele completou três grandes cadernos com citações, em geral
relacionadas à história da economia. Em dezembro de 1864, depois de ter lido
o "Système des contradictions économique ou Philosophie de la misère",
de Pierre-Joseph Proudhon, que ele achou “muito fraco”, Marx decidiu escrever
uma crítica diretamente em francês, para que seu oponente, que não lia em
alemão, fosse capaz de entendê-lo. O texto ficou pronto em abril de 1847 e
publicado em julho com o título de "Misère de la philosophie: Réponse
à la Philosophie de la misère de M. Proudhon". Tratava-se do primeiro
escrito publicado por Marx sobre economia política, que expunha suas ideias
sobre a teoria do valor, a abordagem metodológica apropriada para uma
compreensão da realidade social e o caráter historicamente transitório dos
modos de produção. Enquanto os conflitos sociais se intensificavam na segunda
metade de 1847, as atividades políticas exigiam mais tempo de Marx. Em junho,
a Liga Comunista, uma associação de trabalhadores e artesãos alemães com
filiais internacionais, foi fundada em Londres; em agosto, Marx e Engels
estabeleceram uma Associação de Trabalhadores Alemães em Bruxelas; e, em
novembro, Marx se tornou vice-presidente da Associação Democrática de
Bruxelas, que se dividia entre uma ala revolucionária e uma parte democrática
mais moderada. No final de 1847, a Liga Comunista deu a Marx e a Engels a
tarefa de escrever um programa político. Pouco tempo depois, em fevereiro de
1848, esse texto foi publicado com o título de "Manifesto do Partido
Comunista". Suas palavras iniciais: “Um espectro ronda a Europa, o
espectro do comunismo”, estavam destinadas a marcar o verdadeiro temor de
classe da burguesia em relação à revolução socialista.