18 DE FEVEREIRO DE 1986 – MORREU NELSON CAVAQUINHO: O POETA
QUE CANTOU OS SOFRIMENTOS E AMORES DO POVO POBRE!
Quando alguém entra em um botequim onde se aprecia o
autêntico samba (algo cada vez mais raro) e escuta "a Flor e o
Espinho", "Quando eu me chamar saudade", "Folhas
Secas" ou "Juízo Final" logo se depara com versos de uma
emotividade impressionante, misturando dor e amor em meio às amarguras da vida
cotidiana dos trabalhadores. São assim as canções de Nelson Antônio da Silva, mais
conhecido como Nelson Cavaquinho, para muitos o "profeta dos
desenganos", das desilusões amorosas, das angústias da vida, devido aos
seus sambas com certa dose de pessimismo frente à miséria do povo pobre, apesar
de sua crença em Deus estar sempre presente no curso de sua obra musical,
refletindo os costumes dos setores mais oprimidos da população. Ele nasceu no
Rio de Janeiro em 29 de outubro de 1911, no berço de uma humilde família
carioca. Mesmo pobre, levava uma boa infância e brincava em peladas, com
bolinhas de gude e frequentava a escola, mas devido a problemas financeiros por
que passava sua família, teve que abandonar a escola no terceiro ano primário
para trabalhar numa fábrica de tecidos e depois como auxiliar de eletricista.
Nesta época, Nelson já mostrava seu dom musical. Nas tardes de domingo, seu tio
Elvino tocando violino e Nelson tentando acompanhá-lo num instrumento feito em
casa: uma caixa de charutos com arames esticados e seu pai, Brás Antônio da
Silva, tocava tuba na Polícia Militar. A mãe de Nelson era lavadeira no
Convento de Santa Tereza e cuidava de seus cinco irmãos: Arnaldo, Atarílio,
Iracema, João e José. Na adolescência, morando na Gávea, entraria em contato
com os chorões e suas músicas. Contemplava os grandes mestres do cavaquinho e
ia espiando e aprendendo os truques do instrumento, mas não tinha dinheiro para
comprar um cavaquinho, treinava quando conseguia emprestado. Ainda muito jovem,
se aproximaria da malandragem carioca e ficaria amigo de grandes nomes do
samba, como Noel Rosa e Cartola. Cabelos prateados, uma voz de aço, com
rouquidão curtida em madrugadas boêmias pelo Rio de Janeiro. Suas músicas são
de uma simplicidade impressionante, como somente os grandes gênios conseguem
fazer, não há um verso ou nota a mais do que o necessário. O grande Nelson
Cavaquinho morreu aos 74 anos, no dia 18 de fevereiro de 1986, uma semana
depois de comemorar a vitória da Mangueira no carnaval daquele ano.
Em suas andanças, conheceu músicos de grande influência em
sua formação, como Heitor dos Prazeres, Mazinho do Bandolim e o violonista
Juquinha, de quem recebeu importantes noções de como tocar cavaquinho.
Demonstrando grande habilidade para o instrumento, Nelson compôs um choro,
"Queda", que o fez tornar-se respeitado como músico, passando a ser
chamado para fazer shows. Ganhou enfim um cavaquinho e já mostrava o seu estilo
peculiar de tocar o cavaquinho: tocar apenas com dois dedos. E foi então
batizado "Nelson Cavaquinho", apelido que o acompanharia por toda a
vida. Com 20 anos, conheceu Alice Ferreira Neves e foi obrigado a se casar,
depois de arrastado pelo pai da moça até a delegacia. Com ela, teria quatro
filhos, aos quais encontrava dificuldades para criar, pois sem emprego, Nelson
teve que pedir socorro à família. Seu pai conseguiu então um posto como
cavalariano na Polícia Militar. Lá, Nelson pegava diariamente o seu cavalo e
subia o morro da Mangueira para a patrulha. Chegando lá, parava de bar em bar,
onde fez amizades com os sambistas como Cartola, Carlos Cachaça e Zé da Zilda.
Nelson conta uma história interessante desta época. "Resolvi parar numa
tendinha e deixei amarrado na porta o cavalo, (...) fiquei tanto tempo
conversando com o Cartola, que quando saí da birosca, cadê o animal? Tinha
sumido. Fiquei apavorado. E resolvi, assim mesmo, voltar para o quartel. Não é
que quando chego lá dou de cara com o cavalo na estrebaria? O danado parecia
que sorria pra mim pela peça que me pregou." Sua patrulha era diferente,
como conhecia todos no morro, quando encontrava alguma encrenca, não prendia,
conversava com os envolvidos e chegava a um acordo. Cada vez mais no samba e na
boêmia, passava dias longe de casa, faltava ao trabalho e era punido com
detenção. Dizia: "Eu ia tantas vezes em cana que já estava até me
acostumando ao xadrez. Era tranquilo, ficava lá compondo, entre as músicas que
fiz no xadrez está "Entre a Cruz e a Espada". No começo da década de
40, depois de três dias e três noites na rua, tocando cavaquinho, quando voltou
para casa, descobriu que sua mãe havia morrido e fora enterrada dias antes. A
música triste de Nelson refletia as amarguras por que havia passado.
Começou a fazer algum sucesso como compositor quando Cyro
Monteiro gravou algumas de suas músicas, como a emblemática "Rugas".
Separou-se da mulher, e ficou "livre" para dedicar-se à música e à
boemia. Sem dinheiro, vendia seus sambas por ninharias na Praça Tiradentes. Na
década de 50, alegando que o cavaquinho era muito pequeno, o trocou pelo
violão, mas não abandonou o modo de tocar com o polegar e o indicador que
sempre impressionou músicos de renome. Como compositor era marcante a
melancolia e a morte era tema muito frequente. "Sou um homem que está
muito perto da fatalidade. Minhas músicas, por isso, falam sempre em morte e em
Deus, não faltando os amores fracassados". Com um repertório de mais de
600 composições (a maioria delas inéditas ou esquecidas, pois dificilmente o
músico as escrevia, preferindo guardá-las na memória), Nelson Cavaquinho criava
de madrugada, nas mesas dos bares, com o violão e um copo de cerveja ou
cachaça.
Nelson compôs com uma infinidade de parceiros, entre eles o
amigo Zé Ketty, mas como eram de gravadoras distintas foram impedidos de gravar
juntos, o clássico "Meu Pecado", cantado inicialmente por Elizete
Cardoso e oficialmente de autoria somente de Zé Ketty. Vendia seus sambas por
necessidade, tanto que esta prática rendeu uma história curiosa. Nelson
Cavaquinho e Cartola compuseram um samba. Cartola encontrou com um conhecido
comum que disse: "Cartola, tem um samba aqui que é uma maravilha. Você
quer ouvir? Quero. Vou cantar. Cartola comentou: Mas essa segunda parte é
minha! E o dono do samba informou: Ah, mas agora é minha. Eu comprei de Nelson
Cavaquinho. Cartola pôs-se a rir. Ao encontrar Nelson Cavaquinho comunicou:
"Nunca quero negócio contigo. Faço samba com você, você vai vender e nem me
diz nada? Nelson do Cavaquinho argumentou: Vendi tudo não, vendi a minha parte.
Agora tu vende a tua, porque a minha, eu tava duro, vendi." Um parceiro se
transformaria em sua alma gêmea: o mecânico de máquinas de calcular Guilherme
de Brito, boêmio e seresteiro, pintor primitivo e poeta da mesma escola
Nelsoniana. Nelson e Guilherme se encontraram em 1946, num botequim do subúrbio
de Ramos. Nelson vivia o auge da mais destemperada boemia: dias inteiros,
semanas até, de bar em bar, sem aparecer em casa. Foi um casamento musical à
primeira vista, uma união artística de 40 anos responsável por muitos dos
melhores sambas já feitos. Alguns exemplos são: A Flor e o Espinho, Luto,
Pranto de Poeta, Depois da Vida, Quando eu me Chamar Saudade e Folhas Secas,
imortalizada na voz de Elis Regina. Guilherme de Brito, seu principal parceiro,
conta como o conheceu: "Conheci o Nelson Cavaquinho no Café São Jorge.
(...) Nelson já era um sucesso, quando passava de manhã no botequim, estava
aquele aglomerado de gente em volta de uma mesa. Às vezes eu voltava de noite,
trabalhava o dia inteiro, e lá estava o Nelson com o seu violão. Até que um dia
eu me atrevi e cheguei perto dele com a primeira parte de um samba, que foi
"Garça", e falei: "Ô Nelson, vê se você gosta aqui...". Ele
disse que estava ótimo e fez a segunda parte. Dali em diante seguimos até o fim
da vida e fizemos um trato de compormos juntos, só eu e ele. Foi muito boa a
parceria e fomos leais até o fim da vida dele. Se bem que ele pulou fora duas
vezes durante esse período e compôs com outro cara, mas foi muito bom. Se ele
estivesse vivo, estaríamos com certeza até hoje ligados um ao outro".
Guilherme, boêmio mais moderado, tentou levar Nelson pelos caminhos de uma
carreira menos atípica. Em vão, apesar de algumas concessões de Nelson, que nos
últimos anos concordou em aproximar-se timidamente do mercado. Apesar da grande
produção artística, Nelson Cavaquinho deixou apenas dois LPs e teve algumas
composições gravadas por intérpretes como Elizete Cardoso. Era um rebelde a seu
modo, um verdadeiro artista do povo em estado puro, que teve como amigos já no
final de sua vida Paulo Cesar Pinheiro e Eduardo Gudin. Em 1977, gravou o LP os
Quatro Grandes do Samba com Candeia, Guilherme de Brito e Elton Medeiros, um
registro histórico do cancioneiro de quatro artistas legítimos do povo,onde
encontramos desde as letras que representam uma amostra da poesia do povo –
seja na melancolia e sofreguidão da poesia da dupla Nelson Cavaquinho e
Guilherme de Brito, seja no caráter eufórico dos partidos-altos de Candeia,
onde é irresistível não requebrar. Há também no disco o samba "Sem
ilusão", um verdadeiro desabafo de Elton Medeiros, onde ele justifica o
porquê de seu afastamento do carnaval, cada vez se tornando mais show business
e afastando-se gradativamente de suas origens no curso da ditadura militar que
ceifou toda uma geração de artistas e compositores.
Já idoso, Nelson continuava com o violão, abraçava-o
carinhosamente, com seu estranho hábito de tocá-lo quase na vertical e as
composições persistiram até o fim. Um dos mais importantes criadores de sua
geração, cantor, compositor e instrumentista, Nelson Cavaquinho morreu aos 74
anos, no dia 18 de fevereiro de 1986, uma semana depois de comemorar a vitória
da Mangueira no carnaval. A nós, que empunhamos a resistência cultural contra o
domínio do lixo musical que tragicamente hoje domina nosso país e inclusive as
"escolas de samba", só resta reverenciar o poeta que cantava os
sofrimentos e amores do povo pobre!