sábado, 7 de julho de 2018

07 DE JULHO DE 1912, 106 ANOS DO FLA X FLU: COMEMORANDO O MAIOR CLÁSSICO DO FUTEBOL BRASILEIRO EM TEMPOS DA MAFIOSA COPA DA FIFA


O artilheiro Doval, ídolo das duas torcidas,
o oposto do mercenário Neymar

O mais importante dramaturgo brasileiro nasceu em Recife, 23 de agosto de 1912, pouco depois do primeiro clássico entre Flamengo e Fluminense (7 de julho), que acabou de completar 106 anos. Estamos falando de ninguém mais do que Nelson Rodrigues, o “anjo pornográfico” como ele próprio se intitulava em razão de sua obra arrasadora, embora não-revolucionária, dos costumes da sociedade burguesa de sua época. Quando criança mudou-se para o Rio de Janeiro com a família. No bairro carioca de Aldeia Campista que Nelson Rodrigues começou a dar os primeiros passos em direção a consagração de suas geniais crônicas e peças teatrais que esmiuçavam acidamente a tradicional família de classe média das décadas iniciais do século XX. Como “escola” foi beber na fonte os dramas em seu bairro: as vizinhas alcoviteiras de janela, as solteironas ressentidas, as viúvas tristes, os ciúmes de seu pai com relação à sua mãe, as tragédias familiares, a vida nos prostíbulos, a morte etc., ou seja, versava por toda a “podridão” da classe média urbana. A paixão pelo futebol, o Fluminense, nasce já na infância. Escreveu textos memoráveis acerca da mística em torno do glorioso “Fla-Flu”, os quais foram a pedra de toque para popularizar a senda dos dois clubes rivais e a tensão do maior clássico do futebol brasileiro. Contudo, a obra deste grande personagem do século XX foi aquela que percorreu a crônica dos costumes e da moral vigente dentro da sociedade patriarcal-oligarca de tal forma que escandalizava todos os falsos moralistas de direita de plantão. Mas, quem foi este gênio conservador, em sua trajetória pessoal e familiar, que criticava os nacional-desenvolvimentistas e defendeu o golpe militar de 1964? Um reacionário como ele próprio se autodenominava!

Para compreendermos um pouco o dramaturgo e o cronista esportivo é necessário abordarmos alguns elementos de sua obra. Nelson Rodrigues soube como ninguém captar a profundidade do comportamento humano, suas paixões, traumas, moralidade. Isto porque a história da sua vida permitiu-lhe: fora repórter policial cuja formação serviu para melhor compreender as razões dos crimes passionais, os escândalos sexuais, o comportamento humano sob as diversas tensões que a vida nos irroga. Este foi, sem dúvida, seu convívio com os dramas da vida real que o moldou de forma indelével. Aos 17 anos presencia o assassinato de seu irmão, Roberto, alvejado por tiros desferidos por uma mulher tresloucada da “alta sociedade” que não aceitara ter seu nome publicado no jornal ultraconservador da família de Nelson acusada de trair o marido, trauma o que o marcou por toda a vida e essencial para entendermos o teatro e o pensamento de Nelson Rodrigues. Uma de suas peças mais conhecidas, “A mulher sem pecado” (1941), é um drama de irretocável caráter psicológico, cujos temas passam pelo ciúme doentio, a obsessão de um homem atormentado por seus sentimentos para com sua esposa. Fingimento e impotência (uma paralisia forjada do personagem principal) diante da desconfiança da traição da mulher com o irmão dela (o incesto está quase sempre presente nas obras). “Vestido de Noiva”, escrito dois anos depois, Nelson Rodrigues desenvolve mais a trama psicológica (a proximidade com o psicodrama faz de sua obra uma criação ímpar na dramaturgia brasileira), na qual descreve brigas familiares, adultérios, amores por prostitutas, o incesto e o estupro do pai sobre a filha. O falso moralismo e a crítica profunda ao moralismo pequeno-burguês são soberbamente expostos nas obras-primas “Os sete gatinhos” (1958), “Bonitinha mas ordinária” (1963) e “Toda nudez será castigada” (1965), muito embora o reacionarismo esteja presente nela, uma vez que a “transgressão” dos costumes será tragicamente punida com a morte e não entendida como um ato de libertação ou de ruptura com o próprio conservadorismo “pudico” da classe dominante.

Apenas um cronista que não vai além das consequências do papel, da critica social, não propugnava uma ruptura político-ideológica com o regime capitalista. Não era revolucionário de modo algum, ao contrário, um reacionário que em razão de suas experiências de vida gostava de chocar a moral dos “bons costumes” da classe média urbana de sua época, expondo toda a degradação e hipocrisia imperantes em seu seio. Só para se ter uma pequena noção, em sua crônica do jornal O Globo às vésperas do AI-5, chamava as manifestações estudantis contra a ditadura de “jovens canalhas”. Por ironia, teve seu filho, Nelsinho, dirigente do MR8 preso e torturado pelo regime militar. Em uma entrevista à Revista Manchete (agosto/77), quando do lançamento do seu livro “O Reacionário”, disseca sua posição anticomunista: “...o sujeito deve ler o meu livro para saber o que eu acho, para saber do meu anticomunismo, saber do meu horror a Marx... Porque no duro, no duro, eu não sou reacionário. A mais cruel forma de reacionarismo está nos países socialistas, na Rússia, em Cuba, na China, etc.”. Uma analogia importante deve ser feita. Balzac, no século XIX, era um romancista, novelista e contista de concepção abertamente burguesa. No entanto, sua obra, profundamente psicológica, refletia em todos os níveis o modo de vida da sociedade burguesa francesa da época, as contradições e os conflitos da mesma. Marx era um ávido admirador de Balzac e recomendava para que todos os comunistas a lessem com toda atenção para entender os meandros da mentalidade burguesa dominante à época.

O modo de “enxergar” o mundo através das paixões foi primorosamente aplicado ao futebol. Nelson Rodrigues, como salientam seus biógrafos, não se importava com os resultados, a bola era um “reles e ridículo detalhe” dizia. O que lhe apetecia era a dramaticidade, a tragédia, a paixão que o futebol exercia nas massas torcedoras e o exaltou em sua dimensão épica: “Uma torcida não vale a pena por sua expressão numérica. Ela vive e conflui no destino das batalhas pela força do sentimento. E a torcida tricolor leva um imperecível estandarte de paixão”. A “paixão” faz o imaginário do clássico Fla-Flu que completou 106 anos no dia 7 de julho. Foi Nelson e seu irmão Mário Filho (que deu o nome para o Maracanã) que atiçaram a rivalidade dos dois times cariocas, exaltando a mística em torno deste grande clássico do futebol brasileiro. Nelson Rodrigues gostava de provocar afirmando que o futebol do Flamengo (torcedor “povão”) nasceu de uma dissidência do Fluminense (time da classe média) em 1912, ano do primeiro Fla-Flu (vencido pelo Flu). Torcedor doente, afirmava sem papas na língua: “Tudo é Fla-Flu, o resto é paisagem”. Anos depois dizia irônica e aristocraticamente que “o Flamengo tem mais torcida, o Fluminense tem mais gente”! Em 1963, o Maracanã comportou um público de 194.603 mil para assistir o Fla-Flu, a maior multidão de todos os tempos em jogos de clubes, razão pela qual ganhou o nome de o “clássico das multidões” e a aura dos grandes craques que por ele passaram (“El Loco” Doval, Zizinho, Rivelino, Zico, Castilho, Telê Santana etc.). Wilson Gomes, o Samarone, imortalizado craque pelas palavras de Nelson Rodrigues “faz jogadas de um virtuosismo, de uma beleza, inexcedíveis”, foi o cérebro da equipe do Fluminense na década de 1960.

Os anos 40 e 50 do século passado permitia a criticidade entre a intelectualidade, fruto de uma sociedade que ia aos poucos rompendo com o agrarismo se deslocando para um pensamento urbano-industrial. A crítica ao modo de vida oligárquico ainda tinha assento nas crônicas jornalísticas e na literatura. Nos dias atuais, Nelson Rodrigues seria certamente banido da sociedade, porque hoje o que impera é o chamado “consenso” pasteurizado de opiniões. Expor a fundo as imensas contradições, os traumas, preconceitos e a hipocrisia de seus semelhantes é se colocar na marginalidade e ser execrado pela opinião pública do “politicamente correto” ditado pela ofensiva ideológica do imperialismo sobre todo o planeta, na qual a Casa Branca conferiu a democracia um valor universal utilizada como artifício para atacar militarmente países que não se alinham a sua política neocolonista. Logo, “questionar” não é considerado “democrático” pela mídia murdochiana. Neste sentido, temas como o incesto, crimes passionais, os suicídios, a loucura devem estar fora de qualquer discussão, pois o que importa hoje é o corpo “sarado”, a implantação de silicone nos seios, a lipoaspiração, quantos “amigos” serão acrescentados no “Facebook”, de quem vou falar mal agora, como fazer para me dar bem na vida... Mas o Fla-Flu conseguiu marcar historicamente a dicotomia do “Bem contra o Mal” que permeia o imaginário popular, que Nelson conseguiu imortalizar tão bem em sua obra “maldita”.