O Blog da LBI reproduz a
entrevista com o militante revolucionário René González, realizada recentemente
pelo jornalista Martín Granovsky do jornal argentino “PAGINA 12”. René é um dos
cinco heróis cubanos que se infiltraram nos grupos terroristas de Miami que tem
como objetivo sabotar o Estado operário cubano a serviço do imperialismo ianque. Condenado a 15 anos de prisão
nos EUA, René é um dos cinco heróis cubanos que já foi libertado. Apesar das diferenças programáticas que nós Trotsquistas estabelecemos com o Castrismo, o exemplo de dedicação e abnegação militante de René (arriscando a sua própria vida), deve se constituir como uma importante referência para as novas gerações de combatentes anti-imperialistas. Em uma etapa histórica de completa degeneração material dos “quadros socialistas” cooptados pelas benesses do Estado burguês, e onde a maioria da atual “militância” é composta por verdadeiros mercenários políticos, o sacrifício revolucionário dos cinco heróis cubanos em prol de um ideal comunista entrará na história da luta de classes do proletariado mundial.
René González: Um herói
do Estado operário cubano
Como foi o início da
missão de se infiltrar? O governo cubano pediu, ofereceu ou ordenou que
fizessem?
Eles me pediram. Essa
não é uma missão que se possa ordenar. E não sei o que há para oferecer. É puro
sacrifício. Ao me pedirem, insistiram para que eu pensasse porque era uma
missão muito arriscada. Não pensei muito e disse que sim.
Era uma missão arriscada
ou suicida?
Se tudo corresse bem,
sairia ileso. Nós não perdemos a vida, tivemos que ir para a prisão. Quando
falo com os jovens de Cuba, eu digo: 'Esta é uma missão que, se vocês não
querem, não digam sim'. Eu não acredito que isso tire o mérito de alguém.
Sinceramente, há muitos riscos e requer características que você nem acredita
no momento em que te propõem a missão. Isso você vai descobrindo.
Que características?
Sou um sujeito bastante
aberto e, para mim, é custoso fingir, no geral. E nunca pensei que pudesse
fazer isso, realmente para mim foi o mais difícil. Foi inclusive daqui. Eu às
vezes digo que foi mais difícil aqui do que lá. Porque aqui tive que fingir,
antes de partir, para os meus irmãos, meus companheiros, para pessoas que me
apreciavam e me tinham em grande estima. E, de súbito, tive que me transformar
em alguém diferente do que eu era. O lado bom é que isso foi me ajudando,
porque você vai dando alguns passos, mas vai avançando, primeiramente, com um
pouco de trabalho, um pouco de dor, porque você não quer decepcionar uma pessoa
cuja confiança você estima. Foi difícil ter que deixar o país e ficar para eles
como um traidor, como uma pessoa que os havia abandonado. Fiz como outro
qualquer faria, como qualquer policial do mundo que precisa se infiltrar em uma
gangue de criminosos sem ser um criminoso. Por isso, quando nos prenderam,
senti alívio por poder voltar a ser eu mesmo.
Em que consistiu o fingimento inicial em Cuba?
De ser um militante, vai
se transformando em uma pessoa que começa a se decepcionar, a se iludir. Mas
não perdi o apreço dos meus companheiros. As pessoas, de modo geral, são
generosas e relutam em aceitar que você mudou tanto. Esse é um instituo natural.
Consideravam que eu continuava sendo boa gente. Enquanto isso, renunciei à
minha carreira. Era piloto. Como comecei a trabalhar em esportes aéreos, havia
um espaço para voar.
A missão incluía roubar
um avião em Cuba e cruzar a Flórida?
Sim. Eram tempos difíceis.
Em 1989 e 1990, o país começava a sentir os efeitos da queda do campo
socialista. Obviamente, isso se refletiu no esporte aéreo e voar ficou mais
difícil. Em um final de semana, consegui trabalhar como controlador de voo. Por
uma dessas coincidências do destino, foi um argentino que me levou ao lugar
onde os paraquedistas saltavam. Ele se chama Santiago, um sobrinho do Che que
era paraquedista. Bom, nesse dia fiquei na torre. Os voos pararam porque o
vento estava ruim e não acompanhava a atividade do salto. Desci, montei no
avião e o levei. Já estava em um ponto sem volta. Tinha que continuar. Uma vez que você continua, precisa ter êxito
porque, se não tiver, é preso ou te matam. Na verdade, tinha pensado que, nesse
fim de semana, levaria o avião na madrugada do dia seguinte. Mas quando disseram que iam parar os voos, eu
insisti para que colocassem gasolina no avião. Tinha 400 litros e não podiam
colocar mais. Pensei: "Bom, com isso chego justo aos cayos da
Flórida". E, de fato, cheguei bastante justo, mas cheguei.
Com que margem com esses
400 litros?
Nenhuma (risos). O voo
durou uma hora e vinte. Fiz como um profissional, apesar de a decolagem ter
sido um pouco catastrófica porque levei o avião na mesma rampa de
estacionamento, sem alinhá-lo na pista. O avião não estava pronto para o voo.
Depois da decolagem tive que orientar todos os instrumentos em dois ou três
minutos. Eu me lembro bem de quando deixei a ilha. Meu coração apertou. Olhei
para trás. Deixava tudo. Minha esposa, minha filha... Mas o piloto se impôs. O
cálculo da potência me tomou muito tempo, como fazia para ir mais rápido de
Cuba sem gastar muito combustível e depois como reduzir para economizar
combustível. Finalmente, subir para procurar um pouco de visibilidade para
encontrar os Cayos da Flórida. Bem, e já ao final do voo, a decisão de me
lançar. Por um momento, pensei que teria que me atirar na água porque não via
os cayos.
Paraquedas ou amaragem?
Amarar perto de algum
barco.
Idade naquele momento?
Tinha 34 anos.
Ou seja, menos de três
anos no dia da Revolução Cubana, em 1 de janeiro de 1959.
Minha geração foi uma
geração que absorveu muito da revolução. Eu nasci em Chicago em 1956. Meu pai
se integrou ao Movimento 26 de Julho de Fidel Castro, quando Fidel já estava em
Sierra Maestra. Na ocasião da invasão da Baía dos Porcos, em 1961, foram às
ruas protestar e foram agredidos em Chicago. Decidem que sua sorte estava
voltada para Cuba e, então, vêm para cá em um dos últimos barcos que naquela
época estavam oferecendo viagens entre Nova York e Havana. Eu tinha apenas
cinco anos e somente algumas recordações. Em uma ocasião, minha mãe foi cuidar
dos preparativos para a viagem a Cuba e me deixou com algum amigo ou com uma
família. E ocorreu à pessoa me colocar uma peruca. Eu me lembro da minha mãe
entrando escandalizada porque não me reconheceu.
Lembro da viagem que
fizemos de Chicago a Nova York de carro, de alguns lugares onde paramos para
comer, como eu e minha mãe dormíamos na parte de trás do carro. E também lembro
da viagem de barco, imagens, assim, do barco, da cozinha, da piscina do barco,
Guadalupe. Em Cuba, meu pai foi trabalhar na construção de uma fábrica. Nesse
tempo, o Che Guevara era ministro da Indústria e estavam construindo muitos
conglomerados industriais para unificar atividades que estavam dispersas. E
então, meu velho trabalhou em uma fábrica de plásticos e lembro que ali vi o
Che casualmente. Dei a mão para ele e tudo, eu já tinha oito anos quando eles
terminaram de construir a fábrica e o Che a inaugurou em dezembro de 1963. O
Che era adorado pelas pessoas. Quando ele terminou, passou pela multidão e as
pessoas começaram a saudá-lo. Meu irmão e eu, que estávamos na plataforma
oposta, pedimos aos nossos pais para cumprimentar o Che, descemos, nos enfiamos
entre as pessoas, chegamos onde ele estava e começamos a dizer: "Che,
Che". Passou a mão pela minha cabeça, me deu a mão. E para o meu irmão
também. Disso nunca esqueci.
Voltando ao voo aos
cayos e ao objetivo de aterrissar vivo.
Tinha que ir para o norte,
mas o vento estava forte pela esquerda, do noroeste. Saí, voei com potência
máxima por uns cinco ou seis minutos para me afastar rápido das costas de Cuba,
muito perto da água, a dois ou três metros de altura. Uma vez afastado o
bastante, reduzi a potência econômica para poder voar mais tempo, mais longe.
Eu me mantive assim por um tempo para escapar dos radares cubanos e evitar a
interceptação cubana, até que calculei que já deveria estar perto dos cayos da
Flórida. Decidi então subir e me afastar da água para ter visibilidade.
Nesse esquema eu ia a
180 quilômetros mais ou menos. Os indicadores de emergência do combustível
começaram a acender. Este avião tem dois tanques, um em cada ala, e cada um dos
tanques tem um indicador para quando faltarem 75 galões. Vi barcos. Decidi voar
por cima deles. Se, depois do último barco, não visse terra, me atiraria na
água ao lado do marco para que me tirassem. Sobrevoei o primeiro barco, o
segundo, o terceiro, comecei a contar e pensei: "bem, aqui não há opção,
cinco minutos e, se não vir terra, volto e me jogo ao lado do barco".
Passei por cima do barco
e comecei a ver o relógio. Um minuto, dois minutos, três minutos, quatro,
cinco... E a terra. Uma coisa incrível. Pensava em ir à base de Boca Chica, que
é a base naval que os norte-americanos têm em Key West. Nesse momento me senti
como Cristóvão Colombo. Pensei: "bom, pelo menos em qualquer lado que eu
me atirar é perto da terra e aí a terra estará". Quando a visibilidade
começou a clarear, ou seja, me aproximar, o que eu tinha primeiro diante de mim
era a base de Boca Chica, então tudo saiu perfeito. Me joguei. Foi uma
aterrissagem bastante brusca. Eu estava muito tenso. O avião deu vários
trancos.
Lembro que, quando parei
o avião, fiquei no meio da pista com o motor em baixo rendimento. Eu levava uma
garrafa térmica de café, abri, me servi, tomei e atirei a garrafa para trás.
Ficou tombando por aí. Olhei para trás e comecei a relaxar, até que as
autoridades chegaram. Há quem diga que toda aterrissagem da qual você possa
sair caminhando é uma boa aterrissagem. Bem, foi este o caso. O trâmite foi
rápido porque eu nasci nos Estados Unidos e apresentei minha certidão de
nascimento. Na verdade, eles não sabiam o que fazer comigo porque normalmente
levam o imigrante a um centro de detenção da imigração. Ao final localizaram
minha avó, fizeram um trâmite bastante pessoal, com um senhor de origem cubana
que vivia ali em Cayo Hueso. E ele me acolheu naquela noite. No outro dia,
minha avó pagou duas passagens e eu fui com ela para Sarasota.
Isso não levantou
nenhuma suspeita?
Meu pai não era uma
figura pública. Saí da base e, em maio de 1990, acabei me instalando em Miami,
na casa de uma tia-avó. Minha família dos Estados Unidos não era de
revolucionários, e tampouco de militantes contrários à revolução. Era boa
gente, de bons sentimentos, com uma longa história de relações entre Cuba e
Estados Unidos. Gente sensivelmente nobre que tinha ido para lá nos anos 40.
Nem anticastristas, nem fanáticos por política. Sua preocupação sempre foi
familiar – tanto que fui bem recebido desde o momento em que cheguei lá quanto
depois da prisão e tudo. Eu os estimo muito.
Como foi sua aproximação
com os grupos anticastristas?
Eu repetia o credo. O
credo de que, em Cuba, as pessoas rastejam pelas ruas, de que não têm o que
comer, de que caem mortos, de que a política bate em todo mundo em qualquer
esquina. Quando você me perguntou sobre a capacidade de fingir, eu disse que é
mais fácil fingir lá. Primeiro, porque não exige nenhum ato de desprendimento.
Mas, segundo, porque é curioso que, para eles, a única coisa que você precisa
fazer é falar o que eles precisam ouvir: coisas más sobre Cuba.
Mas muitos diziam essas
coisas. Qual era o diferencial, no seu caso?
A forma como cheguei.
Com um avião roubado. Durante alguns dias, fui uma celebridade no Miami Herald.
Havia um objetivo
especial nessa aproximação?
Eu ia vendo as
circunstâncias e me aproximava de alguns grupos. Comecei pela CUPA, a Cuban
Pilots Association, que era basicamente um grupo de pilotos. Muitos estiveram
na Baía dos Porcos. Outros haviam sido mercenários no Congo.
Havia alguns famosos
como torturadores na América Latina, como Félix Rodríguez El Gato, que foi o
assassino de Che e também teve seus vínculos com torturadores e com a ditadura
argentina. Hoje desfruta da hospitalidade e da benevolência do governo que o
formou como torturador, os Estados Unidos. Muitos tinham ido do Congo para a
Nicarágua. Alguns eram oficiais do Exército de Fulgêncio Batista.
Depois, me vinculei à
HAR, Hermanos al Rescate, mais jovens do que os outros, embora criados por
veteranos como o terrorista Luis Posada Carriles, um dos maiores criminosos do
hemisfério. Meu objetivo era primeiramente coletar informação e enviá-la para
Cuba. Depois, o governo se encarregaria de processá-la, analisá-la e fazer o
que pudesse para desarticular ações terroristas dos grupos contra Cuba. Com
isso, consegui que os narcotraficantes vinculados a esses grupos fossem presos.
E isso também ajuda a desarticulá-los, pois era isso que lhes dava o sustento
econômico. Fiquei por oito anos entre esses grupos, desde 1990 até 1998, quando
fomos presos. Um era o PUND e o outro era o Comando de Liberación Unido, que
também tinha outro narcotraficante, que identificamos e desarticulamos. E
depois, no fim, fui incorporado ao que foi chamado de Grupo Democracia, que se
dedicou a organizar flotilhas para vir provocar Cuba, entrar em águas cubanas,
criar problemas entre os dois governos. E esse foi o último grupo em que entrei
e no qual, bem… se fez minha a prisão.
Como sua família reagiu
quanto ao assunto e como foi a evolução disso?
Eu vou como desertor.
Isso foi um baque muito forte para os meus pais. Eu não podia contar para
ninguém, são ossos do ofício. É forte, essa é uma das coisas mais difíceis.
Minha filha tinha seis anos quando saí de Cuba. A princípio, minha mulher
dizia: “Aqui tudo parece indicar que esse é um avião com um desertor, então
tenho que assumir isso dessa forma”. Depois ela me contou um pouco a história,
ela começou a ligar os pontos. E começou a me incomodar e tive que dizer. Mas
isso levou um tempo.
Por que, na opinião de
vocês, o processo judicial foi fraudulento?
Eu me perguntaria: “O
que não houve de fraudulento?”. O sistema legal norte-americano, o sistema
federal, é repleto de disfunções. Não apenas para nós. Normalmente, eles
aplicam um sistema que se apoia muito na capacidade de fazer uma negociação.
Então, seu modus operandi é que eles te sobrecarregam. Vamos supor: uma pessoa
foi pega traficando 10 quilos de cocaína, mas um de seus sócios traficou 30.
Então, eles acusam também o primeiro dos outros 30 e lhe dizem: “Bom, nós vamos
te dar uma sentença de vida, mas, se você colaborar conosco, nós tiramos esses
30, te deixamos com seus 10 e te damos cinco anos”.
Se você coopera, os
promotores te usam para mentir e você tem que fazer tudo o que eles pedem para que
o juiz dê cinco anos. E a primeira mentira que essa pessoa tem que aprender a
dizer ao juri, eu diria que é a mentira fundamental do sistema, é que os
promotores te prometeram isso, te propuseram isso, mas é o juiz quem decide.
Estatisticamente, o juiz sempre decide aquilo que os promotores querem. E isso
aconteceu com o nosso caso. E, desgraçadamente, é isso que trouxe o caso até
aqui. Porque, efetivamente, nós tínhamos violado as leis norte-americanas, nós
éramos agentes não registrados, o que implica uma sentença de dez anos, no
máximo. Mas eles, para elevá-la, acusaram três de meus companheiros de
espionagem e um de conspiração de assassinato por conta da derrubada dos aviões
da Hermanos al Rescate no ano de 96. Mas nós dissemos:
“Vamos a julgamento porque
não vamos aceitar acusações falsas”. Isso complicou tudo e assim estamos.
Eu não fui acusado de
espionagem porque me ocupava exclusivamente de grupos paramilitares. Nunca tive
nada a ver com informações militares. Mas houve companheiros que sim. Se você
não procura informações classificadas, não é um espião. Não é um problema
espiar o Estado ou não. Muitas pessoas confundem isso. Você pode procurar
informações sobre o Estado, desde que não seja classificada por esse Estado.
Mas você pode procurar uma informação civil de uma corporação que o Estado
havia classificado porque lhe convém mantê-la.
Por exemplo, há um
avanço tecnológico X, e o Estado e essa corporação entram em um acordo e a
classificam. Mesmo que essa informação seja civil, se for classificada, se tem
um selo que diz “secreto”, você está cometendo espionagem quando procura por
essa informação. Eles confundiram o juri, fazendo com que acreditasse que, pelo
fato de meus companheiros estarem procurando informações de natureza militar,
eles haviam cometido ou estavam tentando cometer espionagem. Mas, na realidade,
a informação que meus companheiros estavam procurando era pública, era
informação visual, informação de jornais.
Quem foi o advogado?
A corte o designou. Eu o
considero meu amigo. Fez um bom trabalho. O que acontece é que, se as
instâncias que têm que aplicar a justiça não querem, não se importam com você
ganhar. Eu comparo o nosso caso com o de um corredor de 400 metros. Ele chega
primeiro ao final e o árbitro diz: “Não, quem vai ganhar hoje é o segundo
porque eu quero assim”. Isso é o que os juízes disseram. Todo árbitro imparcial
que olhou esse caso se deu conta de que é uma barbaridade e estamos falando…
Inclusive analistas
jurídicos norte-americanos?
Analistas jurídicos
norte-americanos, associações de advogados dos Estados Unidos. O comitê de
prisões arbitrárias da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, a
Anistia Internacional, todos emitiram comunicados nos quais indicam que o
julgamento foi injusto, que foi ilegal e que os padrões do devido processo não
foram cumpridos.
Quanto vocês cinco
demoraram para deixar de fingir?
Até que o julgamento se
inicie, você não pode voltar a ser quem era. Nós mantivemos nossa discrição
durante os dois anos de preparação do julgamento.
Nós coordenamos isso.
Primeiro, não podíamos admitir que éramos agentes de Cuba. Nossos advogados
tiveram trabalho também. Como não lhes dissemos, eles foram os que vieram a
Cuba. Ao final, o governo cubano confiou em seu profissionalismo. E se fez uma
defesa muito boa. Realmente, no nosso julgamento, os papeis se inverteram. O
Gerardo, que é caricaturista, fazia caricatura dos promotores, e aquelas
caricaturas percorriam toda a sala, incluindo os que cuidavam da gente, e
acabavam com o estenógrafo, porque as pessoas começaram a se dar conta de que o
julgamento era uma farsa. E isso se sentia na sala. E, no dia em que nos
declararam culpados, esses oficiais de justiça foram nos pedindo desculpas
desde a sala até a cela. Uma coisa impressionante. Você fica impressionado
quando uma pessoa que te vigia muda sua atitude até dizer: “Mas onde está a
espionagem? Onde está o assassinato?”.
Começaram a ver nossas
provas, as provocações da Hermanos al Rescate filmadas, divulgadas na televisão
de Miami como se fosse engraçado. E eles mesmos nos disseram: “Mas como é
possível que o governo cubano tenha demorado tanto para derrubar esses
aviões?”. No entanto, eu nunca fui ensinado a odiar os Estados Unidos. Eu
acredito que um país é muito mais do que seus promotores, do que seu governo, e é muito mais do que o
punhado de milionários que controla a vida desse país.
O advogado Horowitz, por
exemplo, parece ter seguido regras baseadas na defesa dos direitos individuais.
Desde que tomaram a
decisão política de cometer essa vingança – porque, no fim, tudo isso é uma
vingança contra Cuba em cinco homens --, tomaram o caminho errado e tiveram que
justificar esse erro com mais erros. No fim, acabaram fazendo o papel de
ridículo na corte, acabaram sendo o motivo de chacota de todo mundo, pois eles
assim decidiram. Se eles tivessem feito um trabalho decente, o caso teria se
resolvido de outra maneira e eles não teriam de se rebaixar da forma como se
rebaixaram. E ninguém realmente cobriu o julgamento na imprensa
norte-americana. No início sim, o New York Times, mas quando julgamento começou
a mostrar sua real natureza, a jornalista do New York Times desapareceu e nunca
mais voltou. Então, quem o cobriu foi a imprensa de Miami. A maioria foi
comprada. E foi o julgamento com sentença de espionagem mais longa da história
norte-americana. Sete meses de julgamento com testemunhos orais e provas.
Três generais
norte-americanos testemunharam voluntariamente pela defesa, para nos defender.
Os promotores tiveram que trazer um por um – um general, que agora é James
Clapper, o assessor de segurança nacional do Obama, que tampouco pôde dizer
qualquer coisa quanto à espionagem. Um assessor do presidente norte-americano
testemunhou. Falou-se da questão do terrorismo. O governo cubano contratou para
apresentar o recurso na Corte Suprema o melhor que encontrou em Washington, um
especialista em Corte Suprema, que também é analista da CNN: Tom Goldstein. E
Tom Goldstein estava convencido de que colocaria o caso na imprensa.
Nos Estados Unidos,
todos os dias se discute um caso judicial. O que comeu uma mulher, o que matou
uma criança, o cachorro que comeu o vizinho… Tom Goldstein apresentou à Corte
Suprema um briefing muito sólido. Conseguiu um recorde na história norte-americana
de amicus curiae, que são briefings de “amigos da corte” no qual apresentou
depoimentos de partes não interessadas ao processo, incluindo prêmios Nobel,
parlamentares internacionais, associações internacionais de advogados,
associações nacionais de advogados dos Estados Unidos – 12 amicus curiae, isso
nunca tinha sido visto na Corte Suprema. E quando Goldstein chamou a imprensa,
ninguém foi.
Quais são as
perspectivas dos quatro que ainda continuam presos? Quais as desejáveis e quais
as possíveis?
Teria que começar pelas
sentenças. Um dos meus outros companheiros que sai em breve é Fernando
González, sentenciado a 17 anos. Depois o Antonio, em 2017. Ramón, em 2024, e
Gerardo foi condenado a duas penas perpétuas. Esse caso não será resolvido em
âmbito legal. O âmbito legal foi um pretexto que serviu a uma decisão política
que se tomou. Tomou-se a decisão política de se vingar de Cuba por meio de
cinco homens. Houve um painel de três juízes que rompeu com essa decisão
política, e depois isso se reverteu.
Eles mesmos reverteram
ou foi outra instância?
Outra instância do mesmo
tribunal. Mas tudo foi uma decisão política e eu acredito que a solução será
igual: uma decisão política. Pode ser usando a via legal. Da mesma forma que
sinalizaram aos juízes para que violassem a lei, podem sinalizar para que a
cumpram. Nós sempre dissemos que a única coisa que pedimos é que se apliquem as
leis norte-americanas, que não as distorça, que vejam os fatos, e que os
apliquem às suas leis.
Como seria, em termos
processuais, o caso das penas perpétuas? Um indulto presidencial?
Tecnicamente, o
julgamento terminou. Mas há um recurso chamado recurso extraordinário. O
recurso segue o mesmo caminho de todo caso legal. É apresentado à juíza. A
juíza dá a sentença e vai à Corte de Apelações de Atlanta. E depois à Corte
Suprema. Esse recurso está pendente. E ele se baseia em um erro crasso cometido
pelo advogado do Gerardo quanto à estratégia de defesa. Ele defendeu muito bem
seu cliente, mas cometeu um erro porque defendeu Cuba. E os promotores julgaram
Cuba. O aspecto mais forte desse recurso é que o próprio advogado reconhece seu
erro. Pensou em uma questão de um Estado contra outro, e que o Estado cubano
tinha direitos. Mas cometeu um erro: pensou que era impossível que um juri decente
não se desse conta de que Cuba tinha direito a defender sua soberania. E, em
Miami, é impossível encontrar um juri decente.
Agora, os tempos
mudaram. Há muitos sinais de que existe um cansaço quanto a essa política
contra Cuba, sinais inclusive dentro dos próprios Estados Unidos.
Incluindo os cubanos que
vivem lá. Há pouco tempo, saiu uma pesquisa mostrando que 56% dos
norte-americanos dizem que já está na hora de mudar a política em relação a
Cuba. Obama perdeu muito tempo tratando de mimar uma direita que não o quer nem
por ser negro, nem liberal, nem jovem.
René, como foi o final
da pena?
Foram quatro cruzes. Eu
cumpri minha pena em 7 de outubro de 2011. Um ano antes, nós pedimos à juíza
para me deixar em liberdade supervisionada em Cuba, o que é perfeitamente
possível. A juíza tem o poder de modificar a liberdade supervisionada e
permitir que uma pessoa a cumpra fora dos Estados Unidos. Os promotores sempre
trabalharam para que a liberdade supervisionada fosse um outro castigo para mim
e para minha família. Queriam me manter separado da minha gente por três anos.
Além disso, teria cumprir liberdade supervisionada no mesmo distrito no qual
estão os terroristas, os criminosos que contam com a cumplicidade do FBI e do
governo norte-americano. Os promotores se opuseram ao pedido. Disseram que era
prematuro, que era preciso esperar cumprir uma parte da liberdade
supervisionada. Paralelamente, os promotores propuseram que eu renunciasse à
cidadania norte-americana e, em troca, me deixariam vir para cá. Inicialmente,
eu me opus.
Por quê?
Porque isso é um direito
de nascimento. Uma pessoa não tem motivo para ceder seus direitos de
nascimento. Mas depois pensei bem e disse a meus advogados que íamos aceitar a
proposta dos promotores. Eu queria mais do que tudo estar com minha mulher,
minhas filhas, meus pais, meu irmão. Os promotores fingiram que estavam
interessados em chegar a um acordo que implicasse minha renúncia à cidadania em
troca de vir a Cuba. Uns dias antes de eu cumprir minha pena, chamaram meu
advogado e disseram que isso já não estava mais em negociação.
Dias depois, a juíza
indeferiu a moção e eu tive que começar a cumprir minha liberdade
supervisionada nos Estados Unidos. Então, graças a um amigo, consegui uma casa
em um lugar da Flórida, o mais longe possível da prisão, vivendo na
clandestinidade, recluso praticamente como se estivesse em um mosteiro, sem
documentos, sem licença para dirigir, sem cartão de crédito.
Por quanto tempo?
Foi um ano e meio
bastante difícil. Tinha a intenção de renovar a moção quando tivessem se
passado uns meses, para que a juíza me deixasse vir para cá. Em fevereiro de
2012, estava batalhando com meu advogado para voltar a renovar a moção quando
meu irmão ficou gravemente doente. Tivemos que postergar esse trabalho e pedir
à juíza para que me deixasse vir por 15 dias, para ver meu irmão. Os promotores
também se opuseram a que eu viesse para ver meu irmão, que estava morrendo. Mas
a juíza, neste caso, assentiu. Por isso, digo que foi a terceira vez. Vim em
abril de 2012.
Sua família já tinha ido
aos Estados Unidos?
Minhas filhas sim, pois
elas podiam. Minha esposa, não. Ela foi deportada e impedida de voltar para me
ver. Eu retornei aos Estados Unidos e voltei em abril à liberdade
supervisionada. Voltei a trabalhar com meus advogados para fazer a moção. Nós a
apresentamos em junho para que a juíza me permitisse renunciar à cidadania.
De quem foi a decisão de
continuar e levar o processo judicial até o fim?
Para nós, a palavra foi
muito importante em todo esse caso. Em todo esse processo, nossa vantagem foi
moral, e não vamos lhes dar de presente essa vantagem moral. Eles decidiram se
rebaixar e nós decidimos nos elevar.
Você nunca teve dúvida?
Não, eu nunca tive
dúvida, eu ia cumprir a pena. Não ia presentear a juíza com um argumento moral
que nunca ganhou, depois de 15 anos, uma liberdade supervisionada. Se tivesse
ganho antes… mas não agora. Nem a ela nem aos promotores. E eu dou risada agora
porque, quando estávamos discutindo isso com meu advogado e os funcionários das
Bahamas, eu dizia para o meu advogado:
“Melhor eles me deixarem
entrar, porque se não eu pego um bote de Cuba, vou para lá, fico plantado na
corte e digo para a juíza: ‘agora me prenda’”, porque eu não ia descumprir essa
palavra que havia dado. Mas voltei, meu irmão faleceu, voltamos a apresentar a
moção, os promotores de opuseram, e começou uma troca entre os promotores e a
juíza, até que meu pai faleceu em abril de 2013. E, então, voltamos a fazer uma
solicitação para vir de férias para estar com a família por conta do
falecimento do meu pai. E a renúncia à cidadania norte-americana, com a qual
caía o resto da pena. Renunciei à cidadania, a juíza recebeu os documentos, os
admitiu. “Bom, está bem, você pode terminar a liberdade supervisionada em
Cuba”, me disse.
E a família, René?
Estamos lidando da melhor
maneira possível. No fim, ainda que tenha sido tanto tempo, para mim sempre o
reencontro com a família é como se o tempo não tivesse passado. Tem sido tudo
muito bonito, muito grandioso. Estamos juntos, estamos felizes, temos um neto
agora, que veio para alegrar ainda mais minha vida e a da Olguita.
Em que atividade pensa
em trabalhar alguém que viveu essa experiência?
Como piloto, eu gostaria
de voar, mas reconheço que é muito difícil me integrar à aviação como
profissional. Acredito que haja agora um campo na economia se abrindo. Muitos
experimentos estão começando, temos que aprender muitas coisas, e eu gostaria
de trabalhar na economia com alguma coisa, em um projeto de desenvolvimento
local. Mas a ideia que tenho é essa, eu gostaria de trabalhar no processo de
mudança que está sendo realizado: experiências novas de autogestão,
experiências de relações mais horizontais entre as empresas, entre empresas e
governos locais.
O passado te permite se
adaptar à vida cotidiana de hoje?
Toda experiência te faz
crescer. Se não te mata, engorda. E, obviamente, eu li muito na prisão.
História, atualidades, Cuba… Eu estabeleci uma rotina forte de exercícios pela
manhã e, durante a tarde, leitura, estudo. Comecei a estudar economia, inclusive
na prisão. Eu me propus a sair da prisão melhor do que entrei. Disse: “Bom, se
sair melhor do que entrei, essa vai ser a minha medida da vitória”. E assim
foi. Eu acredito que sim, que a rotina que estabeleci na prisão me ajudou
muito. Creio que fiz o melhor que pude.
Agora, aos 57 anos,
depois dessa história, imaginemos uma volta aos 34 e um pedido de uma missão
nos Estados Unidos. A resposta voltaria a ser a mesma?
Sim.