O LEGADO DE GORENDER: QUANDO UMA AUTOCRÍTICA EQUIVOCADA DO
STALINISMO CONDUZ AO ABANDONO DO LENINISMO
Há exatos quatro anos falecia Jacob Gorender, no dia 11 de
junho de 2013, aos 90 anos. Gorender foi ex-dirigente nacional do PCB nos anos
50 e 60 e um dos historiadores Marxistas mais influentes do partido no meio
intelectual e acadêmico. Sua militância começou bastante cedo, aos 18 anos numa
época em que o nazifascismo tomava de assalto a Europa e pretendia dominar a
URSS. Na faculdade de direito em Salvador, sua terra natal (1941), Gorender
começou a participar do movimento estudantil onde conheceu Mário Alves, quem um
ano depois o recrutou para o PCB, dando vazão a sua inquietude de uma infância
e juventude permeadas por imensas dificuldades econômicas por que passava sua
família de pessoas simples. Após combater com a FEB na Segunda Guerra Mundial
em 1945, mudou-se para o Rio de Janeiro onde se estabeleceu por seis anos,
quando teve a oportunidade de conhecer Luiz Carlos Prestes e, depois, por volta
de 1953 deslocou-se para São Paulo, onde o dirigente do partido era Carlos
Marighella. Passou os anos 1955-7 na União Soviética junto a outros 50 jovens
sob a coordenação de Mauricio Grabois. Contudo, nos estertores da década de 50
um fato iria marcar a sua militância política: junto com vários outros
dirigentes de peso do “Partidão” (Giocondo Dias, Mário Alves, Armênio Guedes,
Prestes e Marighella) foi um dos redatores da chamada “Declaração de Março de
1958”, a qual marcaria uma guinada do partido rumo ao
“nacional-desenvolvimentismo” e na crença da necessidade da conquista de um
“governo nacionalista” e “democrático”, a fim de que este rompa as barreiras
dos “resquícios feudais” imperantes ainda no país. Trata-se da revolução por
etapas (primeiro uma revolução democrática dirigida pela burguesia
“progressista” e somente depois seria possível a revolução socialista), o que
culminou posteriormente no apoio do PCB à candidatura nacionalista do General
Teixeira Lott em 1960 e na integração política ao governo Jango. Após o golpe
contrarrevolucionário de 1964, foi expulso do PCB em 1967 por defender a luta
armada contra o regime militar e fundou ao lado de Mário Alves e Apolônio de
Carvalho o PCBR, sendo preso e torturado em 1970. Posteriormente, a obra de
Gorender vai se concentrar na crítica à visão “feudalista” e aos métodos
partidários, aspectos nos quais a imprensa “murdochiana” faz questão de
salientar ao lado de sua produção acadêmica. Nisto sua obra seminal foi “O escravismo
colonial” (publicado em 1978) e o autocrítico “Combate nas trevas” (1987), no
qual teceu ácidas críticas ao “messianismo” de Prestes e à atuação das
esquerdas no pré e pós-golpe militar, obra que marcou a ruptura com sua
militância partidária mergulhando de vez no academicismo pequeno-burguês, cuja
marca maior é a negação da construção do partido revolucionário com estrutura
Leninista, como apologizam atualmente as tendências internas e externas do
PSOL, como a Insurgência, Comuna e o MAIS.
O “amadurecimento” político de Gorender, pode-se assim
dizer, deu-se após o conhecido XX Congresso do Partido Comunista da União
Soviética, durante o qual explode o informe de Kruchev denunciando os crimes de
Stalin com tremendas repercussões internas no PCB, fazendo com que a direção
partidária tenha que conviver com várias divisões internas. Foi neste contexto
de intensa luta interna que para evitar que o partido se dividisse e se
enfraquecesse surgiu a proposta de mudar a sua orientação programática.
Gorender à frente, participava do grupo “abridista” que preconizava que as
discussões deveriam ser abertas para o conjunto da militância, sendo depois
"engordado" com a participação de Mário Alves, Armênio Guedes,
Giocondo Dias, Alberto Passos Guimarães, Apolônio de Carvalho (Jorge Amado
participou de duas reuniões e não mais compareceu). Destas reuniões surgiu a
ideia de mudar a linha do partido, o que aconteceu, de fato, com a “Declaração
de 28 de março de 1958”: “A declaração teria de romper com a linha do chamado Manifesto
de agosto de 1950, que pregava a luta armada, e oficialmente ainda estava em
vigor. Nós estávamos no governo de Juscelino, não havia um único preso
político, a imprensa era livre, os jornais do partido circulavam abertamente,
então a nossa linha estava fora de sintonia. Assim, redigi a declaração, que
foi uma obra coletiva proposta por nós e aprovada pelo Prestes. Essa declaração
passou a ser a linha do partido” (Entrevista concedida a revista Margem
Esquerda, 2007). Ou seja, é a expressão mais acabada da experiência estalinista
de integrar o regime democrático-burguês já durante o governo JK, e uma vez
iludidos com a “democracia dos ricos”, foram impotentes para organizar uma
reação de massas ao golpe contrarrevolucionário de 1964.
Em abril de 1968, no Rio de Janeiro, foi fundado o Partido
Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), sob a direção de Mário Alves,
Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender e outros comunistas de esquerda
(Marighella fora convidado, mas não compareceu, porque já estava em vias de
fundar a ALN). Neste tempo, em meio à crise do PCB (Prestes, por exemplo, foi
contra uma greve geral organizada pela CGT) após o golpe militar, foram
fundados vários outros grupos guerrilheiros que se afastavam de qualquer
orientação leninista, como a ALN de Marighella, VPR, Var Palmares, POLOP, POC,
MR8 etc. O PCBR, por seu turno, apresentava uma estrutura organizacional
híbrida com certa força no Rio de Janeiro, no Paraná, Espírito Santo e no
nordeste. O PCBR chegou a efetuar algumas ações armadas no Rio de Janeiro e em
Recife. Gorender dirigia o partido em São Paulo e não permitiu nenhuma ação
militar, o que indicava abertamente divergências políticas quanto ao método,
preferindo atuar através de imprensa e publicação de folhetos. Por não assumir
a rigidez militar das outras organizações logo sucumbiu à repressão, Mario
Alves foi assassinado após severas torturas, Gorender foi preso e igualmente
torturado nas dependências do DOI-CODI em São Paulo.
No período em que esteve preso, dois anos, decidiu abandonar
completamente a militância partidária, dedicando-se a partir de então aos
“estudos acerca da formação social brasileira”. Em meados de 1974 trata de
começar a redigir a sua maior obra, “O Escravismo colonial”, terminada dois
anos mais tarde, descartando com veemência a velha tese stalinista de um
suposto passado feudal do Brasil, apresentando em seu lugar a defesa do caráter
escravista colonial do passado brasileiro como um “novo” modo de produção.
Contudo, a sua “teoria” geral do escravismo colonial pode ser considerada de
certo ponto frágil, uma vez que rompe igualmente com um pressuposto fundamental
do marxismo, ou seja, a acumulação original do capitalismo começa antes mesmo
do trabalho socialmente remunerado. O Brasil se insere na economia mundial
mercantilista como um grande fornecedor de matérias-primas para impulsionar a
gênese da revolução industrial na Europa. A tentativa teórica de Gorender em
encontrar um “meio termo” entre as teses estalinistas do Brasil feudal e o
programa Trotsquista da revolução mundial permanente fracassou completamente em
todos as direções, sejam políticas ou acadêmicas.
Depois de “Escravismo Colonial”, a obra que mais se destacou
sob a pena de Gorender foi o livro “Combate nas trevas - A Esquerda Brasileira:
das ilusões perdidas a luta armada” (1987), um divisor de águas em se tratando
da ruptura com a perspectiva marxista-leninista de construção do partido
revolucionário. Para ele, esta publicação funcionou como uma “autocrítica”, um
corte em relação à sua militância política prática e teórica nas hostes do PCB
no período denominado “democrático-populista” e depois no PCBR, além de colocar
em questão os diversos movimentos e organizações de esquerda que adotaram a
luta armada como resistência ao regime gorila implantado no pós-1964. Reitera
que faltou à esquerda uma reflexão mais profunda acerca de sua atuação neste
período: “As diversas correntes da esquerda, marxista e não-marxista, souberam
tomar a frente do movimento de massas, formular suas reivindicações e fazê-lo
crescer. Cometeram erros variados no processo, mas o erro fundamental consistiu
em não se prepararem a si mesmas, nem aos movimentos de massa organizados, para
o combate armado contra o bloco de forças conservadoras e pró-imperialistas” (O
Combate nas Trevas). Tal colocação “bastou” para Gorender “eximir-se” dos erros
cometidos pelos heroicos combatentes que sucumbiram assassinados pelo regime
militar, abrindo mão de lutar pela construção do genuíno partido revolucionário
no país para dedicar-se integralmente à vida acadêmica, distante da dura
realidade da luta de classes. Não por acaso, rejeitou vigorosamente todas as
tentativas de reconstrução do PCBR, no período posterior à clandestinidade,
chegando mesmo a desautorizar o grupo do dirigente comunista Bruno Maranhão de
representar a continuidade da organização política que fundara com Mário e
Apolônio.
Até às vésperas de sua morte atuara como um mero
comentarista dos acontecimentos mundiais, típicos de um pequeno-burguês, ao
ponto de criticar até mesmo Marx por este ter “ficado no meio do caminho entre
a utopia e a ciência” (Marxismo sem utopia, 1999) e que, portanto, “É preciso
atualizar o marxismo, retirar-lhes os elementos utópicos” e arremata sem medo
de renegar os mais elementares princípios do comunismo acerca do papel do
proletariado como vanguarda revolucionária: “Uma classe que é impotente para formar
a própria consciência revolucionária só pode ser considerada, pela natureza do
ser real, como uma classe também impotente para fazer a revolução” (idem),
refletindo as imposições de uma nova época, de contraofensiva imperialista
pós-queda do Muro de Berlim e a destruição contrarrevolucionária da União
Soviética. A trajetória de Gorender comprova que se não estivermos sob o regime
e disciplina partidária do marxismo-leninismo fatalmente sucumbir-se-á às
pressões da opinião pública imposta pela democracia dos ricos. Somente a práxis
revolucionária, balizada pelo norte do programa da revolução socialista levada
a cabo pelo proletariado e seu partido Leninista pode criar as bases para a
edificação de um novo modo de produção e uma sociedade de novo tipo.