Um dos maiores representantes do chamado samba de São Paulo, nascido no bairro Cambuci em 1924, Paulo Vanzolini, faleceu aos 89 anos no último domingo (28/4) em razão de uma forte pneumonia. Sua contribuição para enriquecer a música popular brasileira levada a cabo nestes cerca de 60 anos como compositor é um exemplo cabal de uma vida feita em paixão e dedicação. Sua obra deve ser, sem dúvida, ouvida, sentida e difundida para as novas gerações. Foi reverenciado e cantado por grandes ícones da música brasileira, como Chico Buarque, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, Martinho da Vila e outros. Singelamente, e antiestrelista que era, se autointitulava como um “músico amador”, que praticava a música como “hobby” nas horas vagas de cientista, definiu-se como compositor “bissexto”, porque demorava até um ano para finalizar uma peça, razão pela qual expressava uma rara beleza harmônica e de profunda inspiração poética. Concomitante, foi o responsável pela produção de inumeráveis trabalhos científicos na área da herpetologia (répteis), sua paixão desde a adolescência, dedicação que lhe conduziu à direção do Museu de Zoologia da USP de 1963 até 1993 quando se aposentou, contudo sem nunca abandonar a função. Seu amigo, Adoniran Barbosa, o chamava carinhosamente de “professor de zoológico”! Quando sua verve boêmia “colocava um pé” na ciência gostava de galhofar: “ajudei a transformar a velha zoologia composta por velhos e amadores ‘colecionadores de selos’ em uma ciência verdadeiramente metódica, profissional e aplicada”, tal era a precariedade a ela relacionada na década de 60. Apesar de aparentemente díspares, ciência e boemia se complementam em uma vida efervescente de um grande músico e intelectual progressista.
Compôs músicas como ninguém, se valendo de uma linguagem direta sem grandes voltas cujas palavras têm o máximo de aproveitamento em sua simplicidade: “À noite eu rondo a cidade, a te procurar / sem te encontrar / No meio de olhares espio em todos os bares / Você não está” (Ronda, 1951), demonstrando o retrato trágico quase jornalístico do cotidiano (a prostituta que procura o amante para matá-lo!) de uma metrópole que pulula em bares das noites de boemia entre a Avenida São João e o Largo do Paiçandu. O popular conversador acompanhou-o durante toda a sua vida em decorrência de suas incursões e andanças pelo interior e matas do país na qualidade de zoólogo. Nestes momentos mantinha contato direto com populações nativas que lhe indicavam os melhores locais para as coletas científicas de animais, com as quais aprendia e assimilava expressões e ditados populares transpassando-os aos sambas-canção e ritmos regionalistas de São Paulo: “A tua saudade corta / Como aço de naváia / O coração fica aflito / Bate uma, a outra faia / E os óio se enche d'água / Que até a vista se atrapáia, ai” (Cuitelinho). Graças as suas “rondas” pelos ares paulistanos agregou temas e problemas eminentemente urbanos, típicos de uma grande cidade, como um batedor de carteira que furta seus pertences e a perda de uma fotografia alivia seus fracassos amorosos cantado em versos: “Na praça Clóvis / Minha carteira foi batida / Tinha vinte e cinco cruzeiros / E o teu retrato / vinte e cinco / Eu, francamente, achei barato / Pra me livrarem / Do meu atraso de vida” (Praça Clóvis). Enfim, uma aberta declaração de amor por sua cidade: “Longe de casa eu choro e não quero nada / Pois fora do chão ninguém quer e não pode nada / Sinto falta de são Paulo / De escutar na madrugada / Uns bordões de violões / E uma flauta a chorar prata” (Longe de Casa).
Por estas características tão peculiares, Vanzolini sempre se colocou como um intelectual progressista, condição herdada desde seu pai, um convicto antigetulista..Esteve sempre ligado ao popular, às artes, à Natureza e a ciência como paixão de vida. Na década de 40, ao ingressar na faculdade de medicina aderiu ao movimento estudantil e tomou contato com as rodas de boemia e debates com militantes de esquerda, abrindo-lhe novas perspectivas quanto à compreensão da realidade, o que lhe permitiu dar os primeiros passos como compositor ensaiando e declamando versos em esfuziantes noites indômitas. Nos anos 50 frequentava bares da intelectualidade paulistana ao lado de Tarsila do Amaral, Sergio Milliet, Alfredo Volpi e Paulo Rossi... Mais tarde esta veia revelou-se quando após o golpe militar contrarrevolucionário de 1964 chegou a proteger e abrigar vários militantes perseguidos pelo regime gorila, sendo inclusive chamado a depor pelos órgãos de repressão do Estado. Declarou-se um dos mais revoltados contra Wilson Simonal, em uma rara entrevista, “Estadão” (4/7/2009), acusando-o de “dedo-duro” ao criticar as tentativas da mídia em limpar a barra do mesmo: “essa recuperação [da imagem] do Simonal é falsa. Ele era dedo-duro mesmo”! Muitos artistas e comentaristas covardes e “politicamente corretos” o criticaram severamente por esta postura firme e correta. Para a mídia burguesa era o suprassumo do “mau-humor”, claro, porque não se submetia a seus interesses mercadológicos e suas bobagens.
“A sua curiosa personalidade de cientista boêmio, de irreverente cheio de disciplina e rigor, de homem da Noite que faz do dia seu espaço de trabalho. (...) Viva pois esse Paulo poeta compositor cientista boêmio conversador que soube fixar tão bem pela arte momentos significativos da vida”, declarou certa vez Antônio Cândido em entrevista a Folha de S.Paulo. Entretanto, este mundo que tanto seduzia Vanzolini está desgraçadamente desmoronando. Vivemos uma etapa de aberta contrarrevolução em nível mundial e de retrocesso político-ideológico das massas em razão do recrudescimento militar do imperialismo contra os povos de todo o planeta como consequência da destruição da URSS, do Leste europeu, hoje da Líbia, da ofensiva contra a Síria e futuramente contra o Irã.
São os “novos" tempos, do “facebook”, no qual a juventude não mais vai aos bares para conversar ou discutir temas candentes que envolve as artes e a realidade política brasileira, está não obstante preocupada apenas com a superficialidade e sua imagem no “post” internético e em triscar seus “smartfones”, tendo como resultante um aprofundamento do individualismo e, lógico, a negação absoluta do coletivo. A barbárie capitalista imposta por governos tucanos e petistas de plantão a soldo dos estrategistas da Casa Branca praticamente criminaliza as noites boêmias na capital paulistana, proibindo fumar nos bares, cria a “Lei do silêncio”, a Lei Seca, alguns bares não servem bebida alcoólica após a meia-noite etc. etc. Surge destes elementos uma geração cada vez mais pasteurizada e sem qualquer horizonte mais estratégico, quer dizer, sem nenhum referencial político que possa atuar como resistência cultural às investidas ideológicas do grande capital e do imperialismo que tem como alvo principalmente a juventude. Romper com esta situação é uma das tarefas titânicas que está colocada para os marxistas revolucionários, que devem estimular a criatividade, a produção artística e os debates políticos que se confrontem diretamente com as influências nefastas que o mercado nos impõe goela abaixo através da mídia “murdochiana” “idiotizadora”. Infelizmente, com Vanzolini foram embora um dos os últimos resquícios da histórica boemia paulista. Poucos dias antes de partir, já bastante debilitado, continuava a frequentar bares da Moema em madrugadas, com o copo de cerveja estupidamente gelada na mão... Ele se foi, mas o legado de sua vida, as obras-primas e as suas descobertas científicas permanecerão para sempre como patrimônio da humanidade!