Vinicius de Moraes: 100
anos do poeta da boêmia
“Se eu tivesse/se eu tivesse/muitos vícios/o
meu nome/o meu nome/era Vinicius/se esses vícios/fossem muito imorais/eu seria
o Vinicius de Moraes!”
No dia 19 de outubro de
1913, exatamente há cem anos, Marcus Vinitius da Cruz de Melo Moraes debutava
em nosso mundo. Nascido no seio de uma família de músicos do bairro da Gávea,
no Rio de Janeiro, Vinicius de Moraes, o “Poetinha”, assim carinhosamente
chamado por seus amigos, completaria 100 anos neste 19 de outubro. Inveterado
boêmio, foi na noite que conheceu seus principais parceiros de música, de copo,
teatro, paixões, amores e onde aperfeiçoou seus dotes poéticos mais líricos.
Desde criança demonstrou grande habilidade para as letras e a música, tanto que
aos dez anos já participava do coral da escola e começa a montar pequenos
escretes teatrais. Em 1930 ingressa na Faculdade de Direito do Catete, para a
qual dizia não ter a menor vocação, porém teve a oportunidade de conhecer o
escritor Otavio Faria que lhe formou para o mundo das artes literárias e travou
conhecimento com os “modernistas” Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade e
até Plínio Salgado que também fazia parte do movimento. Neste ínterim, atuou como
censor cinematográfico, crítico de cinema sob a companhia de Manuel Bandeira,
Cecília Meireles e Afonso Arinos de Melo Franco. Em 1943 foi aprovado em
concurso para o Ministério das Relações Exteriores, sendo empossado embaixador
em Los Angeles, onde exerceu o cargo por quatro anos. Pouco depois foi
deslocado para Paris, período mais profícuo para desenvolver o trabalho de...
poeta! Os anos 50 marcaram o “debut” de sua veia musical mais aprofundada ao
conhecer um jovem pianista em suas “andanças” pelos cabarés e noites cariocas,
Tom Jobim. Na década seguinte, sua singeleza musical chamou a atenção de gênios
da música do quilate de Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Baden Powell, ... No
entanto, após o golpe militar contrarrevolucionário de 1964 foi afastado do Itamaraty
com a criação do AI-5 sob o estapafúrdio argumento de que sua “vida boêmia era
incompatível com a carreira diplomática”, o que na verdade implicava a
deculturação do país imposta a ferro e fogo pelo regime gorila. A trajetória de
vida de Vinicius de Morais marcou o auge da produção artística no Brasil, dos
anos 50 aos 80, mas após a queda do Muro de Berlim e da URSS, o imperialismo e
sua mídia venal trataram logo de esmagar as tradições culturais de raiz,
impondo não só a barbárie no campo social como no âmbito das artes em todo o
planeta.
Importante destacar foi a evolução estético-política do “Poetinha” em sua trajetória de vida. De simpatizante do integralismo e com uma obra eminentemente cristã na juventude, o convívio direto e aberto com a nata da intelectualidade boêmia abriu-lhe os olhos para amadurecer em todos os aspectos. Seu primeiro livro publicado, “Forma e Exegese” (1935) e “O Caminho para a Distância” refletem bem o início místico-religioso de sua carreira, porém não demora a romper com o arcaísmo quando em 1936 publica os versos profanos e sensuais de “Ariana, a mulher” desaguando em uma elaboração de forte conteúdo popular. Em uma turnê pelo nordeste do Brasil, em 1942, ao lado do escritor americano Waldo Frank muda radicalmente seus conceitos políticos, tornando-se um antifascista, sentimento este aprofundado ao conhecer Pablo Neruda em 1945 de quem foi grande amigo. Colaborador do quinzenário “Para Todos”, de Jorge Amado, publica aí o poema “O Operário em construção” no ano 1956 como desfecho desta nova visão de mundo e inaugura a parceria com Tom Jobim, escalado para compor a música da peça teatral “Orfeu da Conceição” e quase concomitante, com João Gilberto junto a quem daria início a chamada “Bossa Nova”.
A bossa nova surgiu
precisamente junto com o processo de urbanização e industrialização das grandes
cidades brasileiras, respondendo às especificidades ideológicas e objetivas da
época, tanto é verdade que jovens de classe média emergente do pós-guerra foram
seus proponentes e refletia suas aspirações espirituais e humores. Vinicius,
com João Gilberto, lança o LP “Canção do amor demais” em 1958, mostrando ao
mundo a batida ritmada e inovadora da “bossa”, acompanhada da cantora Elizeth
Cardoso, disco chave para se compreender a estética refinada do movimento. Um
ano depois lança outro LP, “Por toda a minha vida” com letras suas e Tom Jobim.
No início da década de 60 começa a compor com Carlos Lyra e Pixinguinha, em uma
fase que dá os primeiros passos para a superação da “bossa nova”, cujo
desenvolvimento aconteceu quando se aproximou de Baden Powell, dando origem aos
“afro-sambas” (“Berimbau”, “Canto de Ossanha”, “Samba da Bênção”...). Em 1962
compõe com Carlos Lyra a peça “Pobre menina rica” lançando Nara Leão como
cantora, já rompendo com os dramas da classe média. Em 1966 lançou o LP “Os
afro-sambas”, evidenciando uma clara ruptura com a estética e os lamentos
pequeno-burguês da bossa nova. A parceria com Toquinho iniciou-se dois anos
depois de ser afastado do cargo de embaixador, em 1970, e com quem grava vários
discos na Itália, Paris (1972-77) e no Brasil. No final dos anos 70, com o
esgotamento político do regime militar, chegou a declamar poemas no sindicato
dos metalúrgicos de São Bernardo dos Campos a convite do então presidente da
entidade Luis Inácio da Silva. Várias músicas de sua autoria foram censuradas
pelos militares, como “Paiol de Pólvora”, “Valsa do Bordel” (nos shows dizia
ser a “Valsa da Puta”) por “afrontarem e desrespeitarem o regime político”
vigente diziam os autos do processo contra o Poetinha.
No dia 9 de julho de
1980 o coração do Poetinha parou de bater, após um derrame cerebral ocorrido
três meses antes, cujas sequelas provocaram um edema pulmonar, deixando
inconclusas e perdidas as obras “Roteiro lírico e sentimental da Cidade de São
Sebastião do Rio de Janeiro” e “O dever e o haver”. Seu último poema soa como
uma balada triste, uma despedida: “Trago a doçura dos que aceitam
melancolicamente./E posso te dizer que o grande afeto que te deixo/Não traz o
exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas/Nem as misteriosas
palavras dos véus da alma.../É um sossego, uma unção, um transbordamento de
carícias/E só te pede que te repouses quieta, muito quieta/E deixes que as mãos
cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora” (Vinicius
de Moraes - Poesia completa e prosa). O rumo tomado por Vinicius de Moraes
comprova mais do que nunca a máxima programática do trotsquismo, segundo a qual
a arte deve estar fortemente enraizada no popular e voltada para a vida, caso
contrário tende a definhar gradativamente ou para o campo da reação ou para a
extinção pura e simples. Vinicius foi um dos poucos intelectuais que viveu
verdadeiramente como poeta, para a arte, a liberdade de criação, muito embora
em sua obra não estive presente o elemento da atuação do artista como vanguarda
na preparação da revolução, porém estava engajado em seu próprio tempo. São as
sábias palavras do velho bolchevique Trotsky que enfatiza o papel do artista
dentro do capitalismo e a luta pelo socialismo: “(...) ao defender a liberdade
de criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político
e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita ‘pura’ (...).
Não, nós temos um conceito muito elevado da função da arte para negar sua
influência sobre o destino da sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da
arte em nossa época é participar consciente e ativamente da preparação da
revolução. No entanto, o artista só pode servir à luta emancipadora quando está
compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz
passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura
livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior” (Manifesto por
uma Arte Revolucionária Independente, 25/7/1938). E nesta época de profundo
retrocesso ideológico imposto pelo imperialismo, a arte revolucionária deve
unir-se à luta pela emancipação da classe operária e proclamar bem alto seu
apelo à resistência cultural contra a banalização e a idiotização das massas
trabalhadoras, padrões de comportamento e de estética empurrados goela abaixo
pela mídia “murdochiana” e seus amos do norte.
No documentário
produzido em 2006 por Miguel Faria e sua filha a cineasta Suzana de Moraes,
sobre a vida de Vinicius, foram colhidos vários depoimentos de parceiros ainda
vivos do “poetinha”. No testemunho dos antigos companheiros de “farra e de
música”, como o de Toquinho e Chico Buarque, ambos tiveram pelo menos a
honestidade intelectual de reconhecer que “no mundo atual não haveria espaço
para Vinicius”. A “observação” vinda de dois ícones da MPB não foi à toa, tanto
Chico como Toquinho se converteram ao atual “mundo do politicamente correto”,
onde a arte e a vida não tem nenhum compromisso com a transformação da
realidade social. Realmente seria inimaginável pensar hoje no maior ídolo de
nossa música e poesia entrar em um estádio lotado de operários em greve e
declamar seu poema: “O operário em construção”, sob a admiração e respeito do proletariado
em plena luta contra a ditadura militar. Mas o melhor viria depois, logo após
sair do estádio de Vila Euclides, no ABC, cercado por operários foi comemorar o
triunfo da greve metalúrgica em um botequim das redondezas regado com muita
cachaça e cerveja. Desgraçadamente os “camaradas” de Vinicius, que no passado
tanto contribuíram com o combate pelo socialismo (como Chico Buarque), hoje não
honram a memória do “grande mestre”, encontrando-se atolados em campanhas
publicitárias reacionárias ou servindo a governos capitalistas de turno. O
legado da vida e obra de Vinicius permanecerá vivo para as futuras gerações,
ainda que embotado por elogios e reverências demagógicas de uma elite social e
artística completamente decadente.