terça-feira, 9 de julho de 2019

HÁ 39 ANOS NOS DEIXAVA VINICIUS DE MORAES: O POETA QUE TRANSITOU DA ABSTRAÇÃO ESTÉTICA DO BELO PARA UMA ARTE COMPROMETIDA COM A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL


Em plena noite no dia 09 de julho de 1980 nos deixava Vinicius de Moraes, se vivo fosse o “poetinha” no próximo dia 19 de outubro completaria 106 anos. Na primeira década do século passado, Marcus Vinitius da Cruz de Melo Moraes, o nosso Vinicius, debutava em nosso mundo um pouco antes de “estourar” a Revolução Bolchevique. Nascido no seio de uma família de músicos do bairro da Gávea, no Rio de Janeiro, Vinicius de Moraes, o “Poetinha”, assim carinhosamente chamado por seus amigos, ele merece ser homenageado como sinônimo de resistência cultural nestes tempos sombrios de retrocesso político e ideológico que se aprofunda com a “gerência” do neofascita Bolsonaro ao Planalto. Inveterado boêmio, foi na noite que conheceu seus principais parceiros de música, de copo, teatro, paixões, amores e onde aperfeiçoou seus dotes poéticos mais líricos.
 
Desde criança demonstrou grande habilidade para as letras e a música, tanto que aos dez anos já participava do coral da escola e começa a montar pequenos escretes teatrais. Em 1930 ingressa na Faculdade de Direito do Catete, para a qual dizia não ter a menor vocação, porém teve a oportunidade de conhecer o escritor Otavio Faria que lhe formou para o mundo das artes literárias e travou conhecimento com os “modernistas” Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade e até Plínio Salgado que também fazia parte do movimento. Neste ínterim, atuou como censor cinematográfico, crítico de cinema sob a companhia de Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Afonso Arinos de Melo Franco. Em 1943 foi aprovado em concurso para o Ministério das Relações Exteriores, sendo empossado embaixador em Los Angeles, onde exerceu o cargo por quatro anos. Pouco depois foi deslocado para Paris, período mais profícuo para desenvolver o trabalho de... poeta! Os anos 50 marcaram o “debut” de sua veia musical mais aprofundada ao conhecer um jovem pianista em suas “andanças” pelos cabarés e noites cariocas, Tom Jobim. Na década seguinte, sua singeleza musical chamou a atenção de gênios da música do quilate de Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Baden Powell, ... No entanto, após o golpe militar contrarrevolucionário de 1964 foi afastado do Itamaraty com a criação do AI-5 sob o estapafúrdio argumento de que sua “vida boêmia era incompatível com a carreira diplomática”, o que na verdade implicava a deculturação do país imposta a ferro e fogo pelo regime gorila. A trajetória de vida de Vinicius de Morais marcou o auge da produção artística no Brasil, dos anos 50 aos 80, mas após a queda do Muro de Berlim e da URSS, o imperialismo e sua mídia venal trataram logo de esmagar as tradições culturais das raizes culturais mais profundas, impondo não só a barbárie no campo social como no âmbito das artes em todo o planeta.

Vinicius em encontro histórico com o
 poeta comunista chileno Pablo Neruda
Importante destacar foi a evolução estético-política do “Poetinha” em sua trajetória de vida. De simpatizante do integralismo e com uma obra eminentemente cristã na juventude, o convívio direto e aberto com a nata da intelectualidade boêmia abriu-lhe os olhos para amadurecer em todos os aspectos. Seu primeiro livro publicado, “Forma e Exegese” (1935) e “O Caminho para a Distância” refletem bem o início místico-religioso de sua carreira, porém não demora a romper com o arcaísmo quando em 1936 publica os versos profanos e sensuais de “Ariana, a mulher” desaguando em uma elaboração de forte conteúdo popular. Em uma turnê pelo nordeste do Brasil, em 1942, ao lado do escritor americano Waldo Frank muda radicalmente seus conceitos políticos, tornando-se um antifascista, sentimento este aprofundado ao conhecer Pablo Neruda em 1945 de quem foi grande amigo. Colaborador do quinzenário “Para Todos”, de Jorge Amado, publica aí o poema “O Operário em construção” no ano 1956 como desfecho desta nova visão de mundo e inaugura a parceria com Tom Jobim, escalado para compor a música da peça teatral “Orfeu da Conceição” e quase concomitante, com João Gilberto junto a quem daria início a chamada “Bossa Nova”.


A bossa nova , que recentemente perdeu seu mestre João Gilberto, surgiu precisamente junto com o processo de urbanização e industrialização das grandes cidades brasileiras, respondendo às especificidades ideológicas e objetivas da época, tanto é verdade que jovens de classe média emergente do pós-guerra foram seus proponentes e refletia suas aspirações espirituais e humores. Vinicius, com João Gilberto, lança o LP “Canção do amor demais” em 1958, mostrando ao mundo a batida ritmada e inovadora da “bossa”, acompanhada da cantora Elizeth Cardoso, disco chave para se compreender a estética refinada de um movimento tipicamente pequeno burguês.Um ano depois lança outro LP, “Por toda a minha vida” com letras suas e Tom Jobim. No início da década de 60 começa a compor com Carlos Lyra e Pixinguinha, em uma fase que dá os primeiros passos para a superação da “bossa nova”, cujo desenvolvimento aconteceu quando se aproximou de Baden Powell, dando origem aos “afro-sambas” (“Berimbau”, “Canto de Ossanha”, “Samba da Bênção”...). Em 1962 compõe com Carlos Lyra a peça “Pobre menina rica” lançando Nara Leão como cantora, já rompendo com os dramas da classe média. Em 1966 lançou o LP “Os afro-sambas”, evidenciando uma clara ruptura com a estética e os lamentos pequeno-burguês da bossa nova. A parceria com Toquinho iniciou-se dois anos depois de ser afastado do cargo de embaixador, em 1970, e com quem grava vários discos na Itália, Paris (1972-77) e no Brasil. No final dos anos 70, com o esgotamento político do regime militar, chegou a declamar poemas no sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo dos Campos a convite do então presidente da entidade Luis Inácio da Silva. Várias músicas de sua autoria foram censuradas pelos militares, como “Paiol de Pólvora”, “Valsa do Bordel” (nos shows dizia ser a “Valsa da Puta”) por “afrontarem e desrespeitarem o regime político” vigente diziam os autos do processo contra o Poetinha.

No dia 9 de julho de 1980 o coração do Poetinha parou de bater, após um derrame cerebral ocorrido três meses antes, cujas sequelas provocaram um edema pulmonar, deixando inconclusas e perdidas as obras “Roteiro lírico e sentimental da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro” e “O dever e o haver”. Seu último poema soa como uma balada triste, uma despedida: “Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente./E posso te dizer que o grande afeto que te deixo/Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas/Nem as misteriosas palavras dos véus da alma.../É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias/E só te pede que te repouses quieta, muito quieta/E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora” (Vinicius de Moraes - Poesia completa e prosa). O rumo tomado por Vinicius de Moraes comprova mais do que nunca a máxima programática do trotsquismo, segundo a qual a arte deve estar fortemente enraizada no popular e voltada para a vida, caso contrário tende a definhar gradativamente ou para o campo da reação ou para a extinção pura e simples. Vinicius foi um dos poucos intelectuais que viveu verdadeiramente como poeta, para a arte, a liberdade de criação, muito embora em sua obra não estive presente o elemento da atuação do artista como vanguarda na preparação da revolução, porém estava engajado em seu próprio tempo. São as sábias palavras do velho bolchevique Trotsky que enfatiza o papel do artista dentro do capitalismo e a luta pelo socialismo: “(...) ao defender a liberdade de criação, não pretendemos absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está de nosso pensamento querer ressuscitar uma arte dita ‘pura’ (...). Não, nós temos um conceito muito elevado da função da arte para negar sua influência sobre o destino da sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da arte em nossa época é participar consciente e ativamente da preparação da revolução. No entanto, o artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma encarnação artística a seu mundo interior” (Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, 25/7/1938). E nesta época de profundo retrocesso ideológico imposto pelo imperialismo, a arte revolucionária deve unir-se à luta pela emancipação da classe operária e proclamar bem alto seu apelo à resistência cultural contra a banalização e a idiotização das massas trabalhadoras, padrões de comportamento e de estética empurrados goela abaixo pela mídia “murdochiana” e seus amos do norte.

No documentário produzido em 2006 por Miguel Faria e sua filha a cineasta Suzana de Moraes, sobre a vida de Vinicius, foram colhidos vários depoimentos de parceiros ainda vivos do “poetinha”. No testemunho dos antigos companheiros de “farra e de música”, como Toquinho,  teve  pelo menos a honestidade intelectual de reconhecer que “no mundo atual não haveria espaço para Vinicius”. A “observação” vinda de um dos ícones da MPB não foi à toa, tanto Toquinho como outros parceiros se converteram ao atual “mundo do politicamente correto”, onde a arte e a vida não tem nenhum compromisso com a transformação da realidade social. Realmente seria inimaginável pensar hoje no maior ídolo de nossa música e poesia entrar em um estádio lotado de operários em greve e declamar seu poema: “O operário em construção”, sob a admiração e respeito do proletariado em plena luta contra a ditadura militar. Mas o melhor viria depois, logo após sair do estádio de Vila Euclides, no ABC, cercado por operários foi comemorar o triunfo da greve metalúrgica em um botequim das redondezas regado com muita cachaça e cerveja. Desgraçadamente os “camaradas” de Vinicius, que no passado tanto contribuíram com o combate pelo socialismo (como Chico Buarque), hoje não honram a memória do “grande mestre”, encontrando-se atolados em campanhas publicitárias reacionárias ou servindo a governos capitalistas de turno. O legado da vida e obra de Vinicius permanecerá vivo para as futuras gerações, ainda que embotado por elogios e reverências demagógicas de uma elite social e artística completamente decadente. O poeta de origem “aristocrática”, e que iniciou sua elaboração literária pela via da formalidade estética do “perfeito”, soube romper com abstração “vazia” do belo”, e colocar sua arte à serviço da transformação social, ainda mesmo sem abrir mão até o final de sua vida da boêmia que tanto amou.