quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

A “REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO” E O EMBUSTE DA ESQUERDA REVISIONISTA ACERCA DAS “REVOLUÇÕES DEMOCRÁTICAS” (GUERRA HÍBRIDA) ORQUESTRADAS PELO IMPERIALISMO EM NOSSOS DIAS


Neste mês celebramos a “Revolução de Fevereiro” na Rússia como parte do caminho para a vitória Bolchevique em Outubro de 1917. O resgate do legado teórico e político como parte das lições do processo revolucionário é de fundamental importância em nossos dias e não apenas um “exercício” de estudo acadêmico como gostam as cátedras “marxistas” desvinculadas da luta de classes hoje. Nesse aspecto destaca-se o método leninista de análise da luta de classes e de construção do partido como instrumento de ação política para a transformação revolucionária da sociedade. Não por acaso em pleno século XXI os charlatães do Marxismo tentam “vender” o conceito de uma suposta revolução como sendo levantes “democráticos” organizados pelo imperialismo contra “ditaduras” nacionalistas, como vimos recentemente na mal chamada “Primavera Árabe”. O foco prioritário do imperialismo ianque para assegurar sua abalada hegemonia mundial é a desestabilização interna de todos os governos burgueses nacionalistas que lhe façam algum tipo de resistência, por mais tênue que esta “oposição” seja declarada. Foi o que ocorreu com a destruição da Líbia sob o regime do coronel Kadafi (a farsa da Primavera Árabe), e agora reduzida a barbárie tribal neoliberal. Com a China pretendem seguir o mesmo roteiro, impulsionando uma “Guerra Híbrida” contra o governo restauracionista do Partido Comunista Chinês. Os atuais protestos em Hong Kong são a expressão concreta desta guerra híbrida que ganharam a projeção da mídia corporativa mundial. Estas “manifestações democráticas” começaram quando um projeto de uma lei de extradição com a China continental foi apresentado, a região não tem procedimento estabelecido de extradição com Pequim, apesar de possuir com países como EUA e Reino Unido. É esta polêmica que desejamos travar aqui a partir dos debates políticos pautados no interior do Partido Bolchevique na Rússia de 1917 e seus reflexos na política revolucionária. Os fatores históricos e sociais que fizeram possível a Revolução de Fevereiro de 1917, prólogo da Revolução de Outubro dirigida pelo Partido Bolchevique oito meses mais tarde, têm suas raízes fincadas nas profundas contradições da Rússia czarista, um típico país camponês que se incorporou à cadeia da economia capitalista mundial somente no final do século XIX, quando os países capitalistas mais desenvolvidos da Europa e da América do Norte já haviam ingressado na fase imperialista. O desenvolvimento capitalista da Rússia foi favorecido por investimentos de capitais originários da França, Inglaterra e Alemanha, que afluíram massivamente ao império dos czares entre 1880 e 1900, possibilitando uma rápida transformação na economia e na sociedade russa. Entretanto, o vigoroso desenvolvimento industrial que concentrou grandes fábricas nos principais centros urbanos, se fez de tal forma que as mais avançadas estruturas e técnicas do capitalismo coexistiam e completavam-se com o atraso econômico no campo, onde ainda imperavam relações semifeudais (a servidão feudal só foi abolida em 1861) e a concentração de terras nas mãos de um punhado de latifundiários. Dessa forma, manifestavam-se na Rússia todas as contradições características dos países capitalistas de desenvolvimento desigual e combinado. No início do século XX a Rússia possuía a maior população da Europa, 174 milhões de habitantes. Destes, cerca de 80% ainda viviam no campo. A maior parte das terras estava em mãos de uma minoria de 30.000 latifundiários, enquanto milhões de camponeses pobres viviam miseravelmente em pequenas propriedades e outros tantos não possuíam nenhuma terra, vendo-se obrigados a trabalhar como operários agrícolas nas terras dos latifundiários. Esta situação condenava os camponeses à pobreza, à miséria e à fome, conduzindo à revoltas periódicas que eram violentamente reprimidas pela autocracia czarista.



A dissolução das relações feudais no campo e o desenvolvimento da grande indústria lançaram uma parcela significativa dos camponeses nos centros urbanos, dando origem a um jovem e combativo proletariado fabril de aproximadamente 10 milhões de operários; um proletariado muito concentrado (as fábricas com mais de 1.000 operários empregavam 41,4% da classe operária russa) que, tendo rompido bruscamente com suas velhas relações sociais, estava aberto para as ideias revolucionárias mais avançadas. A opressão que a autocracia czarista exercia sobre uma multidão de povos e nações que constituíam o império russo era outro fator que alimentava as contradições da sociedade. As lutas de libertação nacional de polacos, finlandeses, ucranianos, letões, lituanos, muçulmanos, etc., que sofriam a opressão nacional nas mãos da casta dominante grã-russa, tiveram um papel muito importante no processo revolucionário russo e acertaram golpes mortais contra a monarquia czarista. O atraso econômico engendrava também o atraso político. Em 1917 a Rússia ainda era uma monarquia absolutista. O Estado czarista era um poder político semifeudal, organizado fora dos padrões burocráticos dos Estados burgueses modernos (recrutamento dos funcionários aberto a todas as classes sociais; ideologia do Estado como autoproclamado defensor do interesse geral de toda a população e situado acima dos interesses das classes e dos indivíduos; direito baseado na igualdade jurídica formal entre todos os cidadãos, etc.). Era, portanto, um Estado controlado quase que exclusivamente por burocratas provenientes ou ligados à aristocracia nobiliárquica e em que os principais cargos do aparelho estatal eram vedados aos membros da burguesia. Num mundo dominado por nações capitalistas, a permanência de um aparelho de Estado feudal sobre uma estrutura econômica já baseada em relações de produção capitalistas, era cada vez mais inviável. Todas as classes da sociedade burguesa se colocavam objetivamente em oposição ao regime czarista com sua burocracia estatal e a aristocracia feudal que lhe dava sustentação.

A existência da autocracia czarista obrigava a burguesia a colocar-se em oposição ao regime visando tomar em suas mãos a direção do Estado e da economia. Com esse objetivo já se organizara desde 1905 no partido democrata-constitucionalista, principal partido burguês de oposição ao czarismo, cuja sigla KDT o tornou mais conhecido como partido cadete. Todavia, na etapa histórica do capitalismo imperialista, a burguesia russa, como toda a classe burguesa de qualquer país de desenvolvimento capitalista tardio, já era politicamente incapaz de colocar-se à frente das massas para realizar mesmo as tarefas históricas clássicas das revoluções burguesas como o fim dos privilégios feudais, a extinção do latifúndio com a distribuição das terras entre os camponeses pobres e a abolição do absolutismo. Dessa forma, já na revolução de 1905 a burguesia, que inicialmente apoiou a mobilização das massas contra a autocracia czarista, pretendendo utilizá-las para forçar o regime czarista a promover mudanças que permitissem sua participação como força social majoritária na direção do Estado, logo se jogou nos braços da reação quando os operários, de armas nas mãos, levantaram suas próprias reivindicações (jornada de 8 horas, aumento dos salários e ocupações de fábricas).

De sua parte, a classe operária russa, antes mesmo de 1905, já dispunha de sua própria organização política, o POSDR, fundado em 1898. As divergências que dividiram os marxistas russos entre bolcheviques e mencheviques começaram no II congresso POSDR, em julho de 1903, em torno da definição do conceito de militante e do tipo de organização de que necessitava o movimento operário para lutar contra o czarismo e pela revolução. Lenin, à frente dos bolcheviques, definia como militante do partido “todo aquele que aceita seu programa e apoia o partido tanto materialmente como por meio da participação pessoal em uma de suas organizações”. A concepção leninista de partido propunha uma organização de combate, formada principalmente por revolucionários profissionais, forjada no centralismo democrático, na hierarquia e na disciplina consciente de seus membros; constituída por quadros preparados por uma longa aprendizagem. Uma organização que pudesse se apresentar com fisionomia própria diante das tendências pequeno-burguesas; preservar a vanguarda consciente da degeneração política e ideológica e preparar, com todos os detalhes da arte revolucionária, a vitória da revolução proletária. Em oposição aos leninistas, os mencheviques, liderados por Martov, consideram membro do partido “todo aquele que aceita seu programa, paga suas cotizações e coopera regularmente no trabalho do partido, sob a direção de uma de suas organizações”. O tipo de organização proposta pelos mencheviques baseava-se no princípio da “ampla democracia”, refletindo a influência das concepções pequeno-burguesas no movimento operário russo.

Para muitos antibolcheviques de hoje todo mal emana do “centralismo democrático” (alguns revisionistas contemporâneos até tentam escamotear sua aversão substituindo a expressão por democracia centralista), que até se justificaria para a luta clandestina contra o czarismo, mas seria completamente desnecessário e até nocivo nas sociedades “democráticas” atuais. De fato, o centralismo leninista não foi pensado, principalmente e antes de tudo, para as condições de clandestinidade sob a tirania czarista (que seguramente influíram na necessidade de centralização da organização leninista), mas por razões políticas fundamentadas no caráter centralizado da própria dominação do capital e seu Estado. Sem uma centralização, sem uma vontade única, o proletariado não poderá levar adiante a luta revolucionária, que exige vencer um Estado centralizado. Tanto Engels em seu “Sobre a autoridade” quanto Lenin em seu “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” destacam a disciplina do proletariado como uma das condições para a vitória sobre a burguesia. Isto é reconhecido por qualquer trabalhador que tenha participado de uma greve. Acatar as decisões democraticamente tomadas majoritariamente por uma assembleia é uma das condições para ter êxito sobre a burguesia e não por acaso, o seu inverso, o desacato, a supressão da democracia operária e a não execução de suas deliberações tomadas nas assembleias proletárias é a política dos burocratas traidores que fazem o jogo do inimigo de classe. Muitos poderão reconhecer que a disciplina é justa quando praticada de baixo para cima, mas o partido bolchevique organizava-se de forma hierárquica de cima para baixo e aí estaria a causa da burocratização. De fato, as coisas se processam de forma diferente entre as organizações de massas (sindicatos, associações, etc.) e as organizações de vanguarda (de caráter partidário). Lenin queria construir com os setores mais avançados do proletariado o Estado maior da revolução social e, por isto, combatia a ideia anarquista de que o partido teria leis próprias independentes da luta de classes pelo poder e da influência da ideologia burguesa sobre as distintas classes sociais e sobre os próprios militantes. Até que o comunismo não dissolva as classes sociais, a lei principal que se manifesta sempre quando se luta pelo poder estatal, é a existência de dirigentes e dirigidos, daqueles que dão ordens e aqueles que a seguem, hierarquia que no partido é definida pelo grau de dedicação e abnegação à luta revolucionária do proletariado. Exatamente por isto, em um partido dinâmico, muitos dirigentes que têm sua militância debilitada por quebra ideológica ou erros políticos de direção são dialeticamente ultrapassados pelos que antes eram dirigidos. Todavia, querer vencer romanticamente esta divisão elementar entre vanguarda e retaguarda com ficções horizontalistas é pura demagogia ou utopia libertária. Significa subordinar a parte mais avançada a mais atrasada, arriscando o caráter revolucionário do partido.

As divergências entre bolcheviques e mencheviques aprofundaram-se a partir de 1905 em torno da definição do caráter da revolução russa e do papel das classes sociais no processo revolucionário. Enquanto os mencheviques defendiam que caberia à burguesia a direção política da sociedade após a derrota do czarismo, os bolcheviques sustentavam que o novo governo revolucionário só podia ser produto de uma aliança do proletariado com o campesinato. A experiência revolucionária de 1905 despertou para a vida política até os setores mais atrasados das massas, como o numeroso campesinato que, pouco propenso a constituir organizações políticas estáveis devido à dispersão imposta pelas suas próprias condições sociais de existência, encontrou um canal de expressão no partido da pequena-burguesia urbana, o partido socialista-revolucionário. A situação revolucionária de 1905, após a derrota na guerra com o Japão (1904-1905), foi um claro sinal, por um lado, da incapacidade do Estado russo manter uma posição de potência internacional e, por outro, de que a Rússia era o Estado europeu mais vulnerável às lutas populares e onde estas estavam mais avançadas da época. A repressão sangrenta do movimento revolucionário de 1905 permitiu salvaguardar o poder de Estado nas mãos do Czar por mais 12 anos. Mas provocou a perda de um dos pilares fundamentais de sustentação do Estado, ou seja, a capacidade de controle ideológico e a sua legitimidade como poder político perante as massas exploradas. Desde o Domingo Sangrento, o Czar perdeu sua feição sagrada diante das massas que passaram a vê-lo como um inimigo de classe. Entre 1905 e 1917, o Estado czarista se manteve fundamentalmente sobre o aparelho repressivo que tornava o czarismo cada vez mais objeto do ódio popular. Dessa forma, quando eclodiu a primeira grande guerra, abrindo uma nova crise e acendendo o estopim para que a revolução fizesse saltar pelos ares todo o corroído edifício do Estado absolutista, preparando as condições para a revolução proletária mundial independente da vontade dos blocos imperialistas que impulsionaram a guerra, a revolução russa já conhecera, nas palavras de Lenin, o seu “ensaio geral” em 1905.

A 1ª Guerra Mundial que começou em agosto de 1914, como consequência da disputa entre as principais potências imperialistas por mercados e por uma nova partilha do mundo colonial, promovendo a maior carnificina humana jamais conhecida até então, embotou temporariamente a consciência dos trabalhadores com o nacionalismo e o patriotismo belicista. Uma onda chauvinista atingiu todas as camadas da sociedade russa, inclusive a classe operária, que se viu afetada pela mobilização de milhões de operários e camponeses para as tropas da frente de batalha, desarticulando temporariamente o movimento operário. A vanguarda revolucionária e os dirigentes do partido bolchevique se viram isolados das massas durante todo um período. Mas, apesar do isolamento, se mantiveram firmes na defesa da derrota de ambos os blocos imperialistas em conflito e pela transformação da guerra imperialista em guerra civil do proletariado contra as burguesias de seus países, em defesa da revolução proletária mundial como única saída para a humanidade diante dos horrores da guerra imperialista. A destruição de forças produtivas se fez particularmente insuportável sobre os países mais atrasados. Na Rússia, a indústria de guerra devorava todos os recursos agravando a situação de miséria das massas trabalhadoras. Aproximadamente 50% de toda a produção e cerca de 75% da produção têxtil foram destinados a suprir as necessidades do exército. Ao final de 1916, as tropas russas já estavam exauridas pela fome. A guerra já custara ao país 1 milhão e 700 mil mortos, destruíra 25% da indústria e 9% da agricultura. As derrotas na frente de combate, o baixo nível de provisões, a desorganização dos transportes e os abusos dos oficiais acabaram por abater completamente o moral dos soldados russos. As deserções adquiriram proporções massivas. A escassez, a miséria, a fome e o aumento vertiginoso dos preços faziam insuportável a situação dos operários e camponeses em todo o país, minando a febre patriótica que contaminou a sociedade no início da guerra. A responsabilidade por toda essa catástrofe recai sobre o Czar e a casta dirigente do Estado. A crise social passou a se refletir no círculo dirigente do Estado, através de intrigas palacianas que culminaram com o assassinato de Rasputin, o sacerdote charlatão que era conselheiro e “guia espiritual” do czar e da czarina, interferindo diretamente nas decisões de governo e que resumia em sua pessoa toda a podridão e corrupção da autocracia czarista. A Revolução Bolchevique foi uma consequência direta da primeira grande crise imperialista que teve sua expressão maior e mais trágica na I Guerra Mundial. Apesar de não ser um marxista, o rigoroso historiador Edward Hallet Carr reconhece que “A Revolução constituiu o primeiro desafio claro ao sistema capitalista, que alcançou seu ponto culminante na Europa no final do século XIX. Sua aparição durante a I Guerra Mundial, e em parte como consequência desta, foi mais que uma coincidência. A guerra descarregou um golpe mortal na ordem capitalista internacional, tal como existia antes de 1914, e revelou sua instabilidade inerente. A revolução pode ser considerada, ao mesmo tempo, como uma consequência e uma causa do declínio do capitalismo” (Edward H. Carr, A Revolução Russa de Lenin a Stalin, 1917-1929, Rio de Janeiro, Zahar, 1980).

A guerra mundial agravou a crise do Estado absolutista e gerou uma conjuntura extremamente favorável para a derrubada do Czar Nicolau II. Em apenas cinco dias, de 23 a 28 de fevereiro, segundo o calendário russo (8 a 13 de março pelo calendário ocidental), a insurreição proletária pôs abaixo a secular monarquia imperial russa. Mas em seu lugar surgiu um governo de latifundiários capitalistas e da burguesia liberal (outubristas e democratas-constitucionalistas), o Governo Provisório burguês de Lvov, Gutchkov e Miliukov, que nasceu da Revolução de Fevereiro como consequência das limitações da luta espontânea das massas. Lvov era um latifundiário e deputado da extrema direita. Miliukov era líder do principal partido burguês, conhecido como Partido dos Democratas Constitucionalistas ou KDT (Kadete). Gutchkov dirigia os Outubristas, que absolutamente nada tinham a ver com a revolução de outubro de 1917, eram assim chamados porque foram criados em apoio ao Manifesto promulgado pelo Czar em Outubro de 1905. Lenin, que se encontrava na Suíça quando explodiu a Revolução, analisou criteriosamente os acontecimentos através de uma série de artigos conhecidos como “Cartas de Longe”, em que escreveu ao CC do partido bolchevique em Petrogrado: “Todo o curso dos acontecimentos da revolução de Fevereiro-Março mostra claramente que as embaixadas inglesa e francesa, com os seus agentes e ‘ligações’, que há muito faziam os mais desesperados esforços para impedir acordos ‘separados’ e uma paz separada entre Nicolau II... e Guilherme II, organizaram diretamente a conspiração, em conjunto com os outubristas e democratas-constitucionalistas, em conjunto com uma parte do generalato e do corpo de oficiais do exército e em especial da guarnição de Petrogrado, para depor Nicolau Romanov”. Analisando de um ponto de vista marxista a correlação das forças sociais na revolução Lenin afirmava: “Se a revolução venceu tão rapidamente e – aparentemente, ao primeiro olhar artificial – de um modo tão radical, é apenas porque, por força de uma situação histórica extremamente original, se fundiram, e fundiram-se com uma notável ‘harmonia’, correntes absolutamente diferentes, interesses de classe absolutamente heterogêneos, tendências políticas e sociais absolutamente opostas. A saber: a conspiração dos imperialistas anglo-franceses que impeliram Miliukov, Gutchkov e Cia a tomarem o poder, no interesse do prosseguimento da guerra imperialista... E, por outro lado, um profundo movimento proletário e popular de massas (de toda a população da cidade e do campo), com caráter revolucionário, pelo pão, pela paz, pela verdadeira liberdade” (Cartas de Longe, 7 a 26 de março de 1917). Nos primeiros dias de março se organizaram sovietes em todas as fábricas, bairros, localidades e regiões. Os mencheviques e socialistas-revolucionários elegeram a imensa maioria nos sovietes. Em essência, a influência dos mencheviques e socialistas-revolucionários refletia o peso social da pequena-burguesia russa, sobretudo das massas camponesas recém-despertadas para a vida política e que se encontravam concentradas aos milhões como soldados do exército. O Partido Bolchevique que na época contava com cerca de 40 mil militantes, embora tenha estado na linha de frente da insurreição, estava longe de ser a força política com maior influência de massas. Mesmo em Junho de 1917 os bolcheviques ainda detinham apenas cerca de 10% dos delegados ao I Congresso de Sovietes de Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia (apenas 105 do total de 1090 de delegados eram bolcheviques).

Na noite de 27 de fevereiro, ocorreu a primeira reunião do Soviete de Petrogrado, que criou o Comitê Executivo Central composto em sua maioria por mencheviques e socialistas-revolucionários. O Soviete se declarou órgão dos deputados operários e soldados e era de fato quem detinha o poder político, colocando as tropas sob seu comando e determinando que as ordens do Comitê da Duma (a Duma era uma espécie de Câmara de Deputados que foi criada pelo czarismo pressionado pela revolução de 1905) só seriam cumpridas se não se chocassem com as do Soviete. Porém, dois dias depois, os membros mencheviques e socialistas revolucionários do Comitê Executivo do Soviete concluíram um pacto com a Duma, avalizando a formação de um Governo Provisório composto por partidos monarquistas e burgueses, presidido por Lvov. Contrariando uma resolução do Comitê Executivo do Soviete de Petrogrado, adotada na tarde do dia 1º de março, que decidira não indicar representantes para compor o governo burguês, a direção do soviete apresenta o nome de Alexandre Kerensky, um parlamentar de um partido pequeno-burguês conhecido como Trudovique que havia sido eleito em 1912 para a Duma para compor este primeiro governo provisório como Ministro da Justiça. Os Trudoviques nasceram, em 1907, de uma ruptura da ala direita do Partido Socialista Revolucionário (SR). Os SRs compunham um partido radical pequeno burguês, camponês, herdeiro dos Narodniks que empregavam métodos de terrorismo individual contra o czarismo. Outro “socialista” indicado ao primeiro ministério provisório foi o menchevique N. S. Tchkheidze. Dessa maneira, mais uma vez na história, os trabalhadores que espontaneamente realizaram a revolução de fevereiro entregaram voluntariamente o poder à burguesia. Assim, a Revolução de Fevereiro desembocou na constituição de um governo burguês fortemente apoiado nas organizações de massa, os sovietes, através de suas direções conciliadoras.

Após a queda do Czarismo, a situação peculiar na Rússia consistia em que, sob a política dos mencheviques e socialistas-revolucionários, a Revolução de 27 de Fevereiro havia dado o poder à burguesia. Faltava ainda ao proletariado o grau de consciência e organização necessárias para tomar todo o poder em suas próprias mãos, passando por cima de suas direções reformistas tradicionais. Forjar-se como o instrumento que vai possibilitar aos trabalhadores preencher esta carência política é a grande contribuição à história da luta de classes que os bolcheviques viriam a dar. Não antes sem uma ferrenha luta interna promovida por Lenin contra a posição dos dirigentes locais do partido, Stalin, Kamenev, Olminsk, Kalinin e Muranov de apoio crítico ao Governo Provisório, de fazer-lhes exigências políticas por pão, paz e terra, mantendo inclusive conversações para a reunificação com os mencheviques. A partir de suas “Cartas de Longe”, como vimos, Lenin defendeu que a política correta dos bolcheviques deveria ser denunciar os líderes mencheviques e socialistas-revolucionários como conciliadores e bajuladores da burguesia. Em um segundo documento intitulado “Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução” que ficou conhecido como “Teses de Abril”, Lenin combate a linha colaboracionista dos dirigentes bolcheviques locais: “Nenhum apoio ao Governo Provisório. Explicar a completa falsidade de suas promessas, sobretudo sobre a da renúncia das anexações. Desmascarar este governo, que é um governo de capitalistas, invés de propagar a inadmissível e ilusória ‘ exigência’ de que deixe de ser imperialista” (7 de abril de 1917). Nas “Teses” Lenin defende a realização imediata de um Congresso do Partido para modificar seu programa mínimo, o qual considera antiquado; a reformular as posições sobre o imperialismo, a guerra imperialista e, sobre o Estado, apontando que a República soviética seria a versão mais acabada de um Estado que tem como exemplo a Comuna de Paris. Ele reivindica também a substituição do nome do Partido de “Social democratas (bolchevique)” para Comunista. Para dobrar os setores conciliacionistas da direção bolchevique em favor da ruptura revolucionária com o governo provisório, Lenin teve que recorrer às bases do partido, que aprovaram toda a linha política das Teses de Abril. Como parte desse combate, conseguiu aproximar do Partido Bolchevique, a organização Inter-bairros de Petrogrado. Este grupo, vinculado a Trotsky, havia tomado postura a favor do poder soviético, mas a política implementada por Kamenev e Stalin no partido, o tinha dissuadido, uma vez que desde a Revolução de 1905 defendia que somente a revolução proletária na Rússia poderia realizar as tarefas democráticas burguesas e iniciar as tarefas de construção do socialismo. Depois de um longo périplo desde o Canadá à Escandinávia, Trotsky regressou à Rússia em 5 de maio. De imediato se integra na organização Inter-bairros, onde militam vários mencheviques internacionalistas, Yureniev e Karajan, antigos bolcheviques e, no geral, os militantes que se viram vinculados a ele há vários anos: Ioffe, Manuilsky, Uritsky, da redação do Pravda (A verdade) e Pokrovsky, Riazánov e Lunacharsky do Nashe Slovo (Nossa Palavra). O partido bolchevique de 1917, o partido comunista cuja constituição defendia Lenin em abril, em torno dos “melhores elementos do bolchevismo”, nasceu da confluência, no seio da corrente bolchevique, das pequenas correntes revolucionarias independentes que integram tanto a organização Inter-bairros como as numerosas organizações socialdemocratas internacionalistas que, até então, haviam ficado à margem do partido de Lenin.

Lenin definiu como característica peculiar da Rússia após a Revolução de Fevereiro, a dualidade de poderes entre o Governo Provisório e o Soviete de Petrogrado. “Esta dualidade de poderes manifesta-se na existência de dois governos: o governo principal, autêntico e efetivo da burguesia, o governo provisório de Lvov e companhia, que tem em suas mãos todos os órgãos do poder, e um governo suplementar, secundário, de controle, personificado pelo Soviete de deputados operários e soldados de Petrogrado, que não tem nas suas mãos os órgãos do poder de Estado, mas se apoia diretamente na indubitável maioria absoluta do povo, nos operários armados e soldados” (Teses de Abril). Os sovietes de operários, que apareceram pela primeira vez durante a Revolução de 1905, ressurgiram em Fevereiro de 1917 como forma de organização operária de base, com um grau elevado de espontaneidade, onde o proletariado russo se organizava autonomamente por zona residencial e/ou por fábrica. Assim, ocorria uma unificação do poder econômico e político em uma nova instituição social, onde os operários elegiam os seus delegados diretamente. Estes poderiam ter seus mandatos revogáveis a qualquer momento e expressavam a vontade das assembleias e plenárias operárias de base. Os sovietes representavam um poder de classe paralelo ao poder político oficial do governo da burguesia e dos partidos conciliadores (mencheviques e socialistas-revolucionários). Obviamente estes dois poderes não poderiam coexistir indefinidamente. A dualidade de poderes era característica de uma situação revolucionária que não se definira, revelando um impasse na luta de classes. Um dos poderes teria que suprimir o outro. Visto que sob essa dualidade de poderes a burguesia não tinha forças para reprimir e desarmar os operários e soldados revolucionários, a Rússia era então o país mais democrático dentre as nações beligerantes. Nessas circunstâncias, segundo Lenin, a tarefa central dos bolcheviques era realizar um paciente trabalho de crítica e esclarecimento dos erros dos partidos pequeno-burgueses, socialista-revolucionário e menchevique; de preparação e coesão dos elementos genuinamente proletários, comunistas; de libertação do proletariado da embriaguez pequeno-burguesa generalizada. Apontando que as contradições da dualidade de poder têm que ser resolvidas em favor do poder proletário, Lenin defende neste momento a consigna de “Todo o poder aos Sovietes” como instrumento de mobilização e conscientização das massas. Assim foi a Revolução de Fevereiro na Rússia que abriu caminho para o Outubro de 1917 e nos legou lições preciosas que devemos aplicar em nossos dias!

OS FALSOS “FEVEREIROS” DE HOJE CELEBRADOS PELOS REVISIONISTAS E O IMPERIALISMO
Quando em 2011 as supostas “revoltas populares” eclodiram no mundo árabe, precisamente na Tunísia e Egito, a esquerda revisionista bateu todos os recordes possíveis de delírios programáticos e oportunismo político em toda linha, capaz até de envergonhar o finado Nahuel Moreno nas “profundezas de seu túmulo”. Seus discípulos e antigos algozes radicalizaram muito sua “teoria” das “revoluções democráticas”, uma versão revisionista e requentada da revolução por etapas, defendida apaixonadamente pelos velhos stalinistas e maoístas. É bom lembrar que o próprio Moreno sempre apresentou sua “contribuição” teórica ao marxismo com muita discrição e por muitas vezes retardatariamente. Foi assim que, por exemplo, os militantes morenistas no Brasil só vieram a saber dois anos depois que no Brasil ocorrera, segundo a imaginação fértil de Moreno, uma autêntica revolução democrática no ano de 1984 em meio a campanha multitudinária das Diretas Já. Na Argentina as mobilizações que forçaram a renúncia da Junta militar logo após a guerra das Malvinas também foram consideradas um genuíno exemplo de "Revolução de Fevereiro"... que nunca alcança o seu "Outubro". Contudo, neste momento no mundo árabe a "grande família" nem precisou esperar por um "Outubro" para classificar os protestos de rua no Egito como: "uma autêntica revolução! Popular, operária, estudantil, de massas que se baseou no método de luta insurrecional... uma revolução socialista por seu conteúdo, ainda que sem uma direção organizada neste sentido." (extraído do site do Movimento Revolucionário em 14/02/2011). Vejamos que o MR, um racha ultra morenista do PSTU, anunciou na época a segunda revolução socialista ocorrida neste planeta, a primeira, é claro, foi a Revolução Russa de 1917, a única diferença para estes palhaços seria a falta de "uma direção organizada". Muito mais do que uma idiotice teórica, estes morenistas concentram toda a caracterização que está sendo elaborada pela esquerda revisionista acerca do processo político que atravessa o Egito e Tunísia. O PTS/LER que se recusa a reivindicar o legado morenista também navega na mesma correnteza, sustentando que "Mubarak foi derrubado de forma revolucionária". A LER avançava no delírio oportunista e tentou polemizar com os que considera "céticos" por não embarcarem na absoluta ausência de critérios revolucionários. Em um artigo assinado por Thiago de Sá assinala: "A queda revolucionária de Mubarak significa também um tapa na cara de todos os céticos, o processo revolucionário mostra a capacidade de todo o povo explorado" (site da LER, 12/02/2011). Os morenistas "autênticos" da LIT, é óbvio, regem a orquestra revisionista cantando loas ao "grande triunfo da revolução no Egito". Para não ficarmos repetitivos e cansativos vale registrar a posição de altamiristas e loristas (PO e POR). Os primeiros defenderam que a revolução no Egito e Tunísia chegou a adentrar em sua "segunda fase", ou seja, a "socialista", já os loristas do POR brasileiro primeiro alertaram que a "revolução no Egito corre perigo" para depois concluírem pateticamente que a revolução pariu um "golpe militar contrarrevolucionário no Egito", ou seja, o delírio político transitou da revolução das massas ... a um golpe pinochetista na cabeça destes idiotas!

O ilusionismo da realidade, um caso típico de embuste programático que marca o revisionismo do século XXI não passa de uma inútil tentativa de desconsiderar a etapa reacionária da luta de classes em escala mundial. Na Tunísia ou no Egito obviamente não ocorreu nenhuma revolução, sequer "democrática" ou de "fevereiro" como preferirem no catálogo dos revisionistas naqueles dias. Na Líbia obviamente nem cabe esse debate! O ascenso inicial de massas esteve muito longe de abalar o conjunto das instituições do regime político, e sequer assumiram um nítido caráter anti-imperialista. As incipientes “revoltas populares” no mundo árabe contra os velhos tiranos pela ausência de uma direção classista e norte socialista, conseguiram no máximo forçar a transição do governo de turno dentro da mesma estrutura social e econômica do Estado capitalista e suas instituições burguesas. O imperialismo ianque acompanhou de perto este processo, que em momento algum saiu do controle dos seus planos militares para a região, como vemos o desastroso resultado da “Primavera Árabe”, que pariu desde protetorados da OTAN como na Líbia e até ditaduras militares como é o caso do Egito! Recentemente, ao fomentar protestos “por democracia”, EUA e Inglaterra desejam de fato promover uma queda de braço com o PCCh, provocando tensões que possam lhe trazer benefícios políticos e econômicos imediatos e futuros. Sabem pelas lições apreendidas nas “Revoluções das Cores” nas ex-repúblicas soviéticas como a Ucrânia que golpeou o governo alinhado a Moscou e na “Primavera Árabe” responsável por derrubar o regime comandado por Kadaffi que é plenamente possível patrocinar manifestações de massas aparentemente com eixos “democráticos” contra governos adversários a fim de alcançar objetivos que sirvam aos monopólios capitalistas e a sua política de recolonização de regiões geoestratégicas. A guerra desenvolvida pela Ucrânia com a ajuda da OTAN na fronteira com a Rússia a partir de protestos pela unificação com a UE demonstra bem o perigo que a China corre. A “Revolução dos Guarda-Chuvas” como foi chamada pela mídia “murdochiana” as manifestações em Hong Kong em 2014 protagonizadas por setores da pequena-burguesia diretamente influenciada pelo Ocidente é parte desta estratégia desestabilizadora das potências capitalistas para debilitar a China e o bloco que forma com a Rússia e os BRIC´s. É preciso apresentar um programa para combater a ofensiva imperialista “democrática” em curso como estamos presenciando em Hong Kong e para superar pela via revolucionária a burocracia restauracionista do PCCh
Sem alimentar as falsas ilusões delirantes e oportunistas é necessário afirmar vigorosamente que sem a construção de um partido operário e revolucionário de massas nenhuma revolução socialista ocorrerá e tampouco sem a existência de uma ampla vanguarda anti-imperialista nenhuma "revolução democrática" triunfará no mundo árabe ou em qualquer parte do planeta. Somente com a existência de organismos de poder das massas, dotadas de uma estratégia militar, será possível levar a frente uma verdadeira Revolução de Fevereiro, que possa significar realmente a ante-sala da revolução social. A tentativa de apresentar novas “fórmulas” de revolução não passou de mais um engodo da “família” revisionista para fazer retroceder ainda mais a consciência do proletariado mundial, tanto que hoje os países que foram palco de tais “rebeliões” estão mergulhados na barbárie social ou submetidos a ditaduras militares assassinas!