quinta-feira, 4 de maio de 2023

TRÊS ANOS SEM ALDIR BLANC: UMA “VIDA NOTURNA” QUE ILUMINOU A CULTURA NACIONAL E ENTROU PARA A HISTÓRIA DO “DIA A DIA” DA MÚSICA BRASILEIRA

O Blog da LBI reproduz o artigo publicado originalmente em 4 de maio de 2020, no dia da morte de Aldir Blanc, fazendo justa homenagem a um dos maiores compositores da música brasileira e um símbolo de nossa resistência cultural.

Partiu nosso genial Aldir Blanc, um dos maiores compositores da música brasileira. Com infecção generalizada, estava internado no CTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, em Vila Isabel, desde o dia 15 de abril. Blanc era o maior conhecedor da cultura carioca, um intelectual de raríssima envergadura e um militante engajado nas lutas democráticas do nosso povo. Totalmente desapegado a bens materiais, vivia recluso nos últimos anos de vida e sequer tinha um plano de saúde privada, pois como médico acreditava no SUS, que desgraçadamente quase lhe falhou no final de sua vida. Um “monstro sagrado”, abnegado pela cultura nacional e pela vida noturna da Zona Norte do Rio, que ele considerava um outro estado distinto da zona sul (Ipanema, Copacabana, Leblon..) dizia que a Tijuca era um “estado de sítio”, fazendo uma crítica sutil a pequeno burguesia carioca... Saiu da “Vida Noturna” e entra definitivamente para a história como um titã glorioso de tantas “lutas inglórias”, e que nas letras deles foram enaltecidas... Trata-se de uma perda irreparável para a cultura nacional, um homem que chegou aos 73 anos reverenciando a vida noturna, a boemia e as reflexões da atordoada alma humana. Aldir Blanc foi o compositor mais perto de Noel Rosa que o “Rio Norte” criou como poeta popular. Deixa composições que marcaram a vida e a história do povo brasileiro.

Nosso poeta nasceu no Rio de Janeiro, no dia 2 setembro de 1946. O menino nascido no Estácio, Centro do Rio, era um observador das ruas, poeta da vida e da cidade. Captava a alma do subúrbio. Virou também cronista e em suas histórias revelava paixões, como o bairro de Vila Isabel, onde passou a infância, o time Vasco da Gama, e o carnaval. Blanc batizou também um dos mais tradicionais blocos do Rio, o “Simpatia é Quase Amor”, que desfila há anos em Ipanema, na Zona Sul. Aos 18 anos, Blanc ganhou uma bateria e, pouco depois, formou o grupo Rio Bossa Trio. Em 1968, conheceu o parceiro Sílvio da Silva Júnior. Dois anos mais tarde, a primeira composição da dupla, “Amigo É pra Essas Coisas”, é gravada pelo grupo MPB-4. Na mesma época, ao lado de outros compositores, como Ivan Lins, Gonzaguinha e Marco Aurélio, funda o Movimento Artístico Universitário (MAU), e torna-se conhecido por criar e integrar associações ligadas à defesa dos direitos autorais. É um dos fundadores da Sociedade Musical Brasileira (Sombras) - responsável pela arrecadação de direitos autorais -, da Sociedade de Artistas e Compositores Independentes (Saci) e da Associação dos Músicos, Arranjadores e Regentes (Amar). “Ela”, sua composição em parceria com César Costa Filho, foi gravada por Elis Regina, em 1971. No ano seguinte, a cantora grava “Bala com Bala”, parceria com João Bosco, e a canção “Agnus Sei” é lançada no Disco de Bolso, compacto que acompanha o jornal O Pasquim.

Ingressou em 1965 na Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, de onde saiu em 1971. Aldir estudou sete anos de medicina, com especialização em psiquiatria, e depois largou tudo para se tornar compositor. A história remonta aos tempos em que andava de calças curtas. Num dia de entrega de boletim, o pai comentou: “Você sempre tira dez em biologia. Quem sabe você não vai ser médico…”. Trabalhou no Hospital Gustavo Riedel, dentro do Centro Psiquiátrico Pedro II, no Engenho de Dentro – o manicômio citado na música “Que Loucura”, de Sérgio Sampaio: “Fui internado ontem/Na cabine 103/do Hospício do Engenho de Dentro/Só comigo tinham dez”.  Eram 40 leitos para mais de 80 pacientes. Todos eram dopados com uma mesma droga. O uso de eletrochoques, rotineiro - Aldir se negou a adotá-lo. Não aguentou a barra e, após um ano, saiu para abrir consultório próprio na rua da Assembleia, no Centro do Rio. Às vezes, chamava o paciente para conversar na rua ou num bar. Assim foi até 1973.

A ideia de viver só de música vinha ficando cada vez mais forte. Na época, Aldir já era um compositor gravado por Elis Regina, letrista do sucesso “Amigo É Pra Essas Coisas”, e a parceria com João Bosco andava a mil. A gota d’água foi a morte, em 1974, de Maria e Alexandra, gêmeas que seriam as primeiras filhas de seu casamento com a professora Ana Lúcia. Nasceram prematuras de sete meses. Maria morreu logo, Alexandra ainda resistiu na incubadora enquanto deu: “Ela morreu sangrando por todos os orifícios: ouvidos, nariz, boca. Aí o seguinte: se não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso que eu quero fazer”. O drama está contado em “Aldir Blanc: Resposta ao Tempo”. Rica em detalhes conhecidos apenas dos mais íntimos, a obra privilegia a trajetória do compositor Aldir, como explica o outro subtítulo: “Vida e Letras”. Estão reproduzidas mais de 450 delas (de quase 600 já compostas), e é incrível como elas sobrevivem bem na página fria, sem a música.

O "velho" surgiu para o público ao lado do eterno parceiro João Bosco, em 1972, em um projeto do jornal carioca O Pasquim chamado “Disco de Bolso”. Na época o semanário lançava um compacto simples, pequeno disco de vinil com duas canções. De um lado um artista consagrado, que no caso foi Tom Jobim com “Água de Março” e, do outro, a dupla com a canção “Agnus Sei”. A dupla João Bosco e Aldir Blanc fez centenas de canções inesquecíveis como “Mestre Sala dos Mares”, “Kid Cavaquinho”, “Nação”, “Tiro de Misericórdia” entre várias outras. Aldir também compôs com vários outros autores como César Costa Filho, Cristovão Bastos, Moacyr Luz, Guinga entre outros. Em 1973, Elis grava ainda várias outras músicas da dupla Bosco e Blanc, como “O Caçador de Esmeralda” e “Cabaré e Comadre”. Um ano depois, em outro LP, Elis grava outros sucessos da dupla, como “O Mestre-Sala dos Mares”, “Caça à Raposa” e “Dois pra Lá, Dois pra Cá”. E em 1979, “O Bêbado e a Equilibrista”, um dos maiores sucessos de sua carreira. Em 1996, o disco comemorativo “Aldir Blanc - 50 Anos”, em homenagem ao compositor, reuniu várias participações especiais, entre elas, Betinho ao lado do MPB4, Edu Lobo, Paulinho da Viola, Danilo Caymmi e Nana Caymmi. O álbum reúne, também, letras e melodias com Guinga, Moacyr Luz, Cristóvão Bastos e Ivan Lins. Com Bosco, emplacou algumas canções na trilha de abertura de novelas e séries, como “Doces Olheiras” (na novela Gabriela, da TV Globo, em 1975), “Visconde de Sabugosa” (para O Sítio do Pica-Pau Amarelo, em 1977), “Coração Agreste” (em Tieta, de 1979), “Confins” (em Renascer, de 1993), “Suave Veneno” (na novela homônima, de 1999), “Chocolate com Pimenta” (tema de novela homônima, em 2003), “Bijuterias” (para a minissérie “O Astro”, no remake de 2011).

Blanc era também cronista, reconhecido pelas bem-humoradas histórias e personagens da Zona Norte do Rio. Publicou também vários livros como cronista, entre eles “Rua dos Artistas e Arredores”, Direto do Balcão, “Porta de Tinturaria”, “O Gabinete do Doutor Blanc”, "Brasil passado a sujo", "Vila Isabel - Inventário de infância" e "Um cara bacana na 19ª", com crônicas, contos e desenhos. Ultimamente vinha escrevendo crônicas ácidas ao noefascista Bolsonaro! Aldir é um resistente, é um dos nossos, um boêmio exemplar.... um homem imprescindível, como nos ensinou Brecht! Estará sempre presente na resistência de nosso povo! (04.05.2020)