110 ANOS DO NASCIMENTO DO “GONZAGÃO”: NO ANIVERSÁRIO DO “REI
DO BAIÃO” TRAGICAMENTE A AUTÊNTICA MÚSICA POPULAR NORDESTINA VEM SENDO
DESTRUÍDA PELO LIXO CULTURAL DAS “BUNDAS DE FORRÓ” PATROCINADAS PELA GRANDE
MÍDIA BURGUESA
“Mas doutô uma esmola a um homem qui é são/Ou lhe mata de
vergonha ou vicia o cidadão/É por isso que pidimo proteção a vosmicê/Home pur
nóis escuído para as rédias do pudê/Dê serviço a nosso povo, encha os rio de
barrage/Dê cumida a preço bom, não esqueça a açudage/Livre assim nóis da
ismola, que no fim dessa estiage/Se o doutô fizer assim salva o povo do sertão”
(Vozes da Seca,
Luiz Gonzaga e Zé Dantas)
Neste 13 de dezembro comemora-se os 110 anos de nascimento
de Luiz Gonzaga Nascimento, o genial “Gonzagão”, conclamado como o “Rei do
baião”. Em 1912, na pequena cidade de Exu, 603 Km de Recife, “viu o mundo a
minha cara” ao falar de si mesmo. Desde criança enterneceu-se pelos encantos
que a sanfona de seu pai (Januário) carregava e revezava com a enxada de pobre
roçador. Sua mãe (Santana) repreendia-lhe severamente com puxões de orelha
quando dedilhava suas primeiras notas no instrumento. Porém, com apenas oito
anos tocou em uma festa ao lado do pai, o que lhe rendeu a sua primeira
sanfona, adquirindo fama na região. Um fato decisivo em sua vida foi a paixão
pela filha de um importante coronel da cidade, quem negou peremptoriamente o
namoro. Gonzaga, indignado, tomou umas “truacas” (cachaças) e resolveu partir
para cima do famigerado coronel com uma pequena peixeira, mas acabou sendo
impedido por sua mãe que lhe aplicou uma tremenda surra. Em razão disto,
triste, resolveu fugir para o mato e decidiu que iria se alistar no Exército.
Partiu para o Crato (região do Cariri) para vender sua sanfona e comprar uma
passagem de trem para Fortaleza onde se alistou. Graças à desobediência a sua
mãe, partiu para ganhar o mundo e uma vida rica em experiências e conhecimento
musical! No entanto, esta vasta lição de vida e musical vem sendo completamente
desfigurada pela grande mídia burguesa (TV e rádio) que coloca as irritantes
“bundas” de forró para “homenagearem” um dos mais importantes ícones da música
popular de raiz no Brasil de todos os tempos. Esta é mais uma consequência
nefasta da etapa contrarrevolucionária por que passamos, a de reação ideológica
imposta pelo imperialismo e o “mercado” da indústria cultural bestializante que
tem a finalidade de destruir qualquer referência de resistência ainda existente
para alimentar “novos” padrões de consumo, tudo o que é descartável e
superficial.
O début de Luiz Gonzaga começou durante o período da chamada
“Revolução de 30”. Quando soldado do Exército foi possível conhecer vários
estados até “montar acampamento” em Juiz de Fora (MG), ocasião em que conheceu
um exímio sanfoneiro, Domingos Ambrósio, que lhe introduziu as notas musicais
mais elaboradas de valsas, fados, tangos e sambas, deixando o jovem Gonzaga
fascinado.
Resolve então ganhar a vida com a música, dando baixa no Exército em
1939, seguindo para São Paulo e Rio de Janeiro onde se estabeleceria por vários
anos. Seu “aprendizado” musical e de vida desenrolou-se perambulando pelos
bares frequentados por prostitutas, pelos cabarés da Lapa, nas ruas e vários programas
de calouros. Incongruentemente se apresentava tocando músicas estrangeiras,
vestindo terno e gravata... Entretanto, não demorou para que um grupo de
estudantes cearenses aconselhasse-o a voltar às suas origens musicais, às da
terra de seu pai. E foi nestas bases que se inscreveu num programa de calouros
no rádio apresentado por Ary Barroso, com uma música de sua autoria “Vira e
mexe”, a qual ficara em primeiro lugar e recebendo calorosos aplausos, o que
lhe valeu a abertura das portas para seu primeiro contrato com a Rádio
Nacional, pelas mãos do diretor Paulo Gracindo. Gonzagão passou a dividir o
palco da rádio com expoentes da MPB do quilate de Mario Lago e Ataulfo Alves,
as grandes sensações da época. Teve oportunidade de conhecer artistas de todo o
país, sendo que neste aspecto reside o conteúdo universal de sua obra expressa
na maturidade. Neste ínterim, trocou experiências com o “gaiteiro” gaúcho Pedro
Raimundo que, para surpresa de Gonzagão, se apresentava sempre de “pilcha”
(indumentária do gaúcho dos pampas), acendendo-lhe a ideia de também exibir-se
com roupas ligadas a sua terra: o chapéu inspirado no cangaceiro Virgulino
Ferreira (Lampião), a quem admirava, o gibão e outras peças características do
vaqueiro nordestino.
1946 foi o ano que Gonzagão voltou para Exu, cujo encontro
com o pai é celebremente detalhado na música “Respeita Januário”, em uma
parceria que se inicia com o cearense Humberto Teixeira (“Baião”, “Juazeiro”,
“Légua Tirana”, “Assum Preto”, “Paraíba”, etc.) e duraria até 1979 com a morte
de Humberto.
Um ano depois, comporia juntamente com seu parceiro, já
completamente “enraizado” em suas origens, a bela e sofrida “Asa Branca”, o seu
maior sucesso (sendo gravada inclusive no exterior por diversos outros artistas
dos EUA, Itália, Japão). Neste período nasce também a parceria com Zé Dantas
(Humberto candidatou-se a deputado), um legítimo homem do campo. Gonzagão
brincava afirmando “Eu sentia até o cheiro de bode nele”! Juntos compuseram a
lamentosa “Vozes da seca”. Em 1950 ganha o apelido de “Rei do Baião” após uma
apresentação em São Paulo. Luiz Gonzaga desponta como um dos maiores vendedores
de disco, condição inédita até então para um artista no Brasil. Era popular e
reconhecido em todo o território nacional, docemente reverenciado por inúmeros
artistas de peso da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Milton
Nascimento, Geraldo Vandré, Clara Nunes etc.
O mais importante é como a mídia murdochiana tratou de
“homenagear” o “Rei do Baião apresentando como seus “herdeiros” as “bundas” de
forró eletrônico. Para a indústria cultural o que vale é consumir “bunda”,
dança tipo aeróbica e os corpos sarados dos dançarinos “forrozeiros”, algo que
não tem nada a ver com o genuíno baião, o que equivale a legitimar o lixo cultural
que o mercado impõe e repete à exaustão do jabá para “viciar” os ouvidos da
grande massa. Ao forró eletrônico corresponde a mesma desvirtualização que
aconteceu com a chamada música sertaneja, quando valores incomensuráveis da
qualidade de Pena Branca e Xavantinho foram relegados por nomes como Zezé de
Camargo e Luciano ou pela porcaria do “sertanejo universitário” descartável
atual (os Victor & Leo, João Bosco & Vinicius) cada vez mais urbano,
“pop” e desenraizado da autêntica cultura popular.
Luiz Gonzaga, junto a seus parceiros, foi quem melhor cantou
a vida cotidiana do povo nordestino, suas agruras, a seca, seus amores muitas
vezes ingênuos, enfim a luta do sertanejo contra a exasperação da fome.
Muito
além de suas posições políticas, durante a ditadura militar e suas relações com
o coronelismo, que foram reais, cabe destacar o seu relevante papel para a
edificação de uma autêntica cultura popular de raiz que vem lamentavelmente
sendo destruída pela mídia global permeada apenas pelo consumo fácil de
mercado, a mentalidade do descartável, da superficialidade das relações, a
péssima qualidade musical e estimulando a belicosidade e a idiotização das
novas gerações. A mercantilização da cultura transforma um gênero tipicamente
rural, o forró de raiz, em uma estilização completamente distinta, urbana e
artificial.
Cabe aos revolucionários, o papel de resistir em todas as frentes
de atuação às imposições ideológicas e de mercado que visam a destruição da boa
música nordestina e brasileira, que não vacila em “homenagear” Luiz Gonzaga
vilipendiando sua magnífica obra musical.