sábado, 28 de novembro de 2020

ESPECIAL: 200 ANOS DO NASCIMENTO DE FRIEDRICH ENGELS

NOSSA HOMENAGEM AO GRANDE COMBATENTE E MESTRE DO PROLETARIADO MUNDIAL, O FUNDADOR DO SOCIALISMO CIENTÍFICO E AUTOR DO MANIFESTO COMUNISTA AO LADO DE KARL MARX

UMA VIDA DEDICADA A LUTA TEÓRICA E POLÍTICA PELA EMANCIPAÇÃO DO PROLETARIADO

O “SEGUNDO VIOLINO”

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NOSSA HOMENAGEM AO GRANDE COMBATENTE E MESTRE DO PROLETARIADO MUNDIAL, O FUNDADOR DO SOCIALISMO CIENTÍFICO E AUTOR DO MANIFESTO COMUNISTA AO LADO DE KARL MARX

Em momentos de profundo retrocesso político e ideológico entre a vanguarda militante, a LBI faz essa justa homenagem a Engels hoje, 28 de novembro de 2020, quando se completam os 200 anos do seu nascimento, reafirmando seu papel como um verdadeiro farol teórico e político para o proletariado mundial em sua luta pela Revolução Comunista e a Ditadura do Proletariado! Reproduzimos abaixo trechos de um artigo de Lênin em homenagem a Friedrich Engels elaborado em 1895. 

Engels foi o mais notável sábio e mestre do proletariado contemporâneo em todo o mundo civilizado. Desde o dia em que o destino juntou Karl Marx e Friedrich Engels, a obra a que os dois amigos consagraram toda a sua vida converteu-se numa obra comum. Assim, para compreender o que Friedrich Engels fez pelo proletariado, é necessário ter-se uma ideia precisa do papel desempenhado pela doutrina e atividade de Marx no desenvolvimento do movimento operário contemporâneo. Marx e Engels foram os primeiros a demonstrar que a classe operária e as suas reivindicações são um produto necessário do regime económico atual, que, juntamente com a burguesia, cria e organiza inevitavelmente o proletariado; demonstraram que não são as tentativas bem intencionadas dos homens de coração generoso que libertarão a humanidade dos males que hoje a esmagam, mas a luta de classe do proletariado organizado. Marx e Engels foram os primeiros a explicar, nas suas obras científicas, que o socialismo não é uma invenção de sonhadores mas o objetivo final e o resultado necessário do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade atual. Toda a história escrita até aos nossos dias é a história da luta de classes, a sucessão no domínio e nas vitórias de umas classes sociais sobre outras. E este estado de coisas continuará enquanto não tiverem desaparecido as bases da luta de classes e do domínio de classe: a propriedade privada e a produção social anárquica. Os interesses do proletariado exigem a destruição destas bases, contra as quais deve, pois, ser orientada a luta de classe consciente dos operários organizados. E toda a luta de classe é uma luta política.

Todo o proletariado que luta pela sua emancipação tornou hoje suas estas concepções de Marx e Engels; mas nos anos 40, quando os dois amigos começaram a colaborar em publicações socialistas e a participar nos movimentos sociais da sua época, eram inteiramente novas. Então, eram numerosos os homens de talento e outros sem talento, honestos ou desonestos, que, no ardor da luta pela liberdade política, contra a arbitrariedade dos reis, da polícia e do clero, não viam a oposição dos interesses da burguesia e do proletariado. Não admitiam sequer a ideia de os operários poderem agir como força social independente. Por outro lado, um bom número de sonhadores, algumas vezes geniais, pensava que seria suficiente convencer os governantes e as classes dominantes da iniquidade da ordem social existente para que se tornasse fácil fazer reinar sobre a terra a paz e a prosperidade universais. Sonhavam com um socialismo sem luta. Finalmente, a maior parte dos socialistas de então e, de um modo geral, os amigos da classe operária, não viam no proletariado senão uma chaga a cujo crescimento assistiam com horror à medida que a indústria se desenvolvia. Por isso todos procuravam o modo de parar o desenvolvimento da indústria e do proletariado, parar a "roda da história". Contrariamente ao temor geral ante o desenvolvimento do proletariado, Marx e Engels punham todas as suas esperanças no contínuo crescimento numérico deste. Quanto mais proletários houvesse, e maior fosse a sua força como classe revolucionária, mais próximo e possível estaria o socialismo. Podem exprimir-se em poucas palavras os serviços prestados por Marx e Engels à classe operária dizendo que eles a ensinaram a conhecer-se e a tomar consciência de si mesma, e que substituíram os sonhos pela ciência. 

É por isso que o nome e a vida de Engels devem ser conhecidos por todos os operários; é por isso que, na nossa compilação, cujo fim, como o de todas as nossas publicações, é acordar a consciência de classe dos operários russos, devemos dar um apanhado da vida e da atividade de Friedrich Engels, um dos dois grandes mestres do proletariado contemporâneo.

Engels nasceu em 1820 em Barmen, na Província renana do reino da Prússia. O pai era um fabricante. Em 1838, Engels teve de abandonar por motivos familiares os estudos no liceu e de entrar como empregado numa casa de comércio de Bremen. Este trabalho no negócio não o impediu de completar a sua instrução científica e política. Foi desde o liceu que ele ganhou ódio ao absolutismo e à arbitrariedade da burocracia. Os seus estudos de filosofia levaram-no ainda mais longe. Predominava então na filosofia alemã a doutrina de Hegel, e Engels tornou-se seu discípulo. Embora Hegel fosse, por seu lado, um admirador do Estado prussiano absolutista, ao serviço do qual se encontrava na qualidade de professor na Universidade de Berlim, a sua doutrina era revolucionária. A fé de Hegel na razão humana e nos seus direitos e o princípio fundamental da filosofia hegeliana, segundo o qual o mundo é teatro de um processo permanente de mudança e desenvolvimento, conduziram os discípulos do filósofo berlinense, que não queriam acomodar-se à realidade, à ideia de que a luta contra a realidade, a luta contra a iniquidade existente e o mal reinante, também procede da lei universal do desenvolvimento perpétuo. Se tudo se desenvolve, se certas instituições são substituídas por outras, por que é que o absolutismo do rei da Prússia ou do tsar da Rússia, o enriquecimento de uma ínfima minoria à custa da imensa maioria, o domínio da burguesia sobre o povo, hão-de perdurar eternamente? A filosofia de Hegel tratava do desenvolvimento do espírito e das ideias; era idealista. Do desenvolvimento do espírito a filosofia de Hegel deduzia o desenvolvimento da natureza, do homem e das relações entre os homens no seio da sociedade. Retomando a ideia hegeliana de um processo perpétuo de desenvolvimento*, Marx e Engels rejeitaram a sua preconcebida concepção idealista; analisando a vida real, viam que não é o desenvolvimento do espírito que explica o da natureza, mas que, pelo contrário, é necessário explicar o espírito a partir da natureza, da matéria... Contrariamente a Hegel e outros hegelianos, Marx e Engels eram materialistas. Partindo de uma concepção materialista do mundo e da humanidade, verificaram que, tal como todos os fenómenos da natureza têm causas materiais, igualmente o desenvolvimento da sociedade humana é condicionado pelo desenvolvimento de forças materiais, as forças produtivas. Do desenvolvimento das forças produtivas dependem as relações que se estabelecem entre os homens no processo de produção dos objectos necessários à satisfação das necessidades humanas. E são estas relações que explicam todos os fenómenos da vida social, as aspirações do homem, as suas ideias e as suas leis. O desenvolvimento das forças produtivas cria relações sociais que se baseiam na propriedade privada; mas vemos hoje esse mesmo desenvolvimento das forças produtivas privar a maioria dos homens de toda a propriedade e concentrar esta nas mãos de uma ínfima minoria; ele destrói a propriedade, base da ordem social contemporânea, e tende ele próprio para o objectivo que se fixaram os socialistas. Estes últimos devem apenas compreender qual é a força social que, pela sua situação na sociedade actual, está interessada na realização do socialismo, e incutir nesta força a consciência dos seus interesses e da sua missão histórica. Esta força é o proletariado. Engels conheceu-o na Inglaterra, em Manchester, centro da indústria inglesa, onde se fixou em 1842 como empregado de uma firma comercial de que seu pai era um dos accionistas. Aí Engels não se limitou a permanecer no escritório da fábrica: percorreu os bairros sórdidos em que viviam os operários e viu com os seus próprios olhos a miséria e os males que os afligiam. Não se limitando à sua observação pessoal, Engels leu tudo o que antes dele se tinha escrito sobre a situação da classe operária inglesa e estudou minuciosamente todos os documentos oficiais que pôde consultar. O resultado dos seus estudos e observações foi um livro que saiu em 1845: A Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra. Já atrás assinalámos o principal mérito de Engels como autor dessa obra. É certo que antes dele muitos tinham descrito os sofrimentos do proletariado e indicado a necessidade de lhe prestar ajuda. Engels foi o primeiro a declarar que o proletariado não é só uma classe que sofre mas que a miserável situação económica em que se encontra empurra-o irresistivelmente para a frente e obriga-o a lutar pela sua emancipação definitiva. E o proletariado em luta ajudar-se-á a si mesmo. O movimento político da classe operária levará inevitavelmente os operários à consciência de que não há para eles outra saída senão o socialismo. Por seu lado, o socialismo só será uma força quando se tornar o objectivo da luta política da classe operária. Tais são as ideias fundamentais do livro de Engels sobre a situação da classe operária em Inglaterra, ideias hoje aceites por todo o proletariado que pensa e luta, mas que eram então absolutamente novas. Estas ideias foram expostas numa obra escrita num estilo cativante, onde abundam os quadros mais verídicos e impressionantes da miséria do proletariado inglês. Este livro era uma terrível acusação contra o capitalismo e a burguesia. Produziu uma impressão muito grande. Em breve, por toda a parte começaram a referir-se a ele como o quadro mais fiel da situação do proletariado contemporâneo. E, com efeito, nem antes nem depois de 1845 apareceu uma descrição tão brilhante e tão verdadeira dos males sofridos pela classe operária. 

Engels só se tornou socialista em Inglaterra. Em Manchester pôs-se em contato com os militantes do movimento operário inglês de então e começou a escrever para as publicações socialistas inglesas. Em 1844, ao passar por Paris de regresso à Alemanha, conheceu Marx, com quem se correspondia já há algum tempo, e que se tinha igualmente tornado socialista durante a sua estada em Paris, sob a influência dos socialistas franceses e da vida em França. Foi aí que os dois amigos escreveram em conjunto A Sagrada Família ou Crítica da Crítica Crítica. Este livro, escrito na sua maior parte por Marx, e saído um ano antes de A Situação das Classes Trabalhadoras na Inglaterra, contém as bases do socialismo materialista revolucionário de que atrás expusemos as ideias essenciais. A Sagrada Família é uma denominação jocosa dada a dois filósofos, os irmãos Bauer, e aos seus discípulos. Estes senhores pregavam uma crítica que se colocava acima de toda a realidade, acima dos partidos e da política, repudiava toda a atividade prática e limitava-se a contemplar «criticamente» o mundo circundante e os acontecimentos que nele se produziam. Os senhores Bauer qualificavam desdenhosamente o proletariado de massa desprovida de espírito crítico. Marx e Engels opuseram-se categoricamente a esta tendência absurda e nefasta. Em nome da verdadeira personalidade humana, do operário espezinhado pelas classes dominantes e pelo Estado, Marx e Engels exigiam não uma atitude contemplativa mas a luta por uma melhor ordem social. Era, evidentemente, no proletariado que eles viam a força capaz de travar esta luta e directamente interessada nela. Já antes do aparecimento de A Sagrada Família, Engels tinha publicado na revista Anais Franco-Alemães, editada por Marx e Ruge, o seu Estudo Crítico sobre a Economia Política, em que analisava, de um ponto de vista socialista, os fenómenos essenciais do regime económico contemporâneo como consequências inevitáveis da dominação da propriedade privada. As suas relações com Engels contribuíram incontestavelmente para que Marx se decidisse a ocupar-se do estudo da economia política, ciência em que os seus trabalhos iriam operar uma verdadeira revolução. 

De 1845 a 1847 Engels viveu em Bruxelas e em Paris, aliando os estudos científicos com uma atividade prática entre os operários alemães destas duas cidades. Foi aí que Marx e Engels entraram em contato com uma associação secreta alemã, a Liga dos Comunistas, que os encarregou de expor os princípios fundamentais do socialismo elaborado por eles. Assim nasceu o célebre Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, publicado em 1848. Este pequeno livrinho vale por tomos inteiros: ele inspira e anima até hoje todo o proletariado organizado e combatente do mundo civilizado. 

A revolução de 1848, que rebentou primeiro em França e se propagou em seguida aos outros países da Europa ocidental, permitiu a Marx e Engels regressarem à sua pátria. Aí, na Prússia renana, tomaram a direção da Nova Gazeta Renana, jornal democrático que se publicava em Colónia. Os dois amigos eram a alma de todas as tendências democráticas revolucionárias da Prússia renana. Defenderam até ao fim os interesses do povo e da liberdade contra as forças da reacção. Estas últimas, como é sabido, acabaram por triunfar. A Nova Gazeta Renana foi proibida. Marx, que enquanto se encontrava na emigração tinha sido privado da nacionalidade prussiana, foi expulso. Quanto a Engels, tomou parte na insurreição armada do povo e combateu em três batalhas pela liberdade, e, após a derrota dos insurrectos, fugiu para Londres através da Suíça. 

Foi igualmente em Londres que Marx veio fixar-se. Engels em breve voltou a ser empregado, e mais tarde sócio, da mesma casa comercial de Manchester onde tinha trabalhado nos anos 40. Até 1870 Engels viveu em Manchester e Marx em Londres, o que não os impediu de estar em estreito contato espiritual: escreviam-se quase todos os dias. Nessa correspondência, os dois amigos trocavam as suas ideias e os seus conhecimentos, e continuaram a elaborar, em conjunto, a doutrina do socialismo científico. Em 1870, Engels veio fixar-se em Londres, e a sua vida intelectual conjunta, cheia de uma atividade intensa, prosseguiu até 1883, data da morte de Marx. Esta colaboração foi extremamente fecunda: Marx escreveu O Capital, a mais grandiosa obra de economia política do nosso século, e Engels toda uma série de trabalhos, grandes e pequenos. Marx dedicou-se à análise dos fenómenos complexos da economia capitalista. Engels escreveu, num estilo simples, obras muitas vezes polémicas em que esclarecia os problemas científicos mais gerais e os diversos fenómenos do passado e do presente, inspirando-se na concepção materialista da história e na teoria económica de Marx. De entre esses trabalhos de Engels citaremos: a sua obra polémica contra Dühring (onde analisa as questões capitais da filosofia, assim como das ciências naturais e sociais) *, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (tradução russa saída em Sampetersburgo, 3.a edição, 1895), Ludwig Feuerbach (tradução russa anotada por G. Plekhánov, Genebra, 1892), um artigo sobre a política externa do governo russo (traduzido em russo na Sotsial-Demokrat  de Genebra, n.os 1 e 2), notáveis artigos sobre o problema da habitação, e, finalmente, dois artigos curtos mas de grande interesse, sobre o desenvolvimento económico da Rússia (Friedrich Engels sobre a Rússia, tradução russa de Vera Zassúlitch, Genebra, 1894). Marx morreu sem ter conseguido completar a sua obra monumental sobre o capital. Contudo, esta obra estava já terminada em rascunho e Engels, após a morte do amigo, assumiu a pesada tarefa de redigir e publicar os volumes II e III de O Capital. Editou o volume II em 1885 e o volume III em 1894 (não teve tempo de redigir o volume IV. Estes dois volumes exigiram um trabalho enorme da sua parte. O social-democrata austríaco Adler observou muito justamente que, editando os volumes II e III de O Capital, Engels ergueu ao seu genial amigo um grandioso monumento no qual, involuntariamente, tinha gravado também o seu próprio nome em letras indeléveis. Estes dois volumes de O Capital são, com efeito, obra de ambos, de Marx e Engels. As lendas da Antiguidade contam exemplos comoventes de amizade. O proletariado da Europa pode dizer que a sua ciência foi criada por dois sábios, dois lutadores, cuja amizade ultrapassa tudo o que de mais comovente oferecem as lendas dos antigos. Engels, em geral com toda a razão, sempre se apagou diante de Marx. «Ao lado de Marx», escreveu ele a um velho amigo, “fui sempre o segundo-violino”. O seu carinho por Marx enquanto este viveu e a sua veneração à memória do amigo morto foram ilimitados. Este militante austero e pensador rigoroso tinha uma alma profundamente afetuosa. 

Durante o seu exílio, depois do movimento de 1848-1849, Marx e Engels não se dedicaram unicamente ao trabalho científico. Marx fundou em 1864 a «Associação Internacional dos Trabalhadores», de que assegurou a direcção durante dez anos. Engels desempenhou nela igualmente um papel considerável. A actividade da Associação Internacional, que unia, de acordo com os ideais de Marx, os proletários de todos os países, teve uma enorme importância no desenvolvimento do movimento operário. Mesmo após a sua dissolução, nos anos 70, continuou o papel de Marx e Engels como unificadores da classe operária. Melhor: pode dizer-se que a sua importância como dirigentes espirituais do movimento operário não cessou de crescer, pois o próprio movimento se desenvolvia sem parar. Após a morte de Marx, Engels, sozinho, continuou a ser o conselheiro e o dirigente dos socialistas da Europa. A ele vinham pedir conselhos e indicações tanto os socialistas alemães, cuja força crescia contínua e rapidamente apesar das perseguições governamentais, como os representantes dos países atrasados, por exemplo, os espanhóis, romenos, russos, que meditavam e mediam então os seus primeiros passos. Todos eles corriam ao riquíssimo tesouro dos conhecimentos e experiência do velho Engels. 

Marx e Engels, que conheciam o russo e liam obras publicadas nessa língua, interessaram-se vivamente pela Rússia, seguiam com simpatia o movimento revolucionário do nosso país e mantinham relações com os revolucionários russos. Ambos eram já democratas antes de se tornarem socialistas e tinham profundamente arraigado o sentimento democrático de ódio à arbitrariedade política. Este sentimento político nato, aliado a uma profunda compreensão teórica da relação existente entre a arbitrariedade política e a opressão económica, assim como a sua riquíssima experiência da vida, tinham tornado Marx e Engels extraordinariamente sensíveis precisamente no sentido político. Por isso, a luta heróica de um pequeno punhado de revolucionários russos contra o poderoso governo tsarista encontrou a mais viva simpatia no coração dos dois experimentados revolucionários. Inversamente, toda a veleidade de voltar as costas, em nome de pretensas vantagens económicas, à tarefa mais importante e mais imediata dos socialistas russos — a conquista da liberdade política — parecia-lhes naturalmente suspeita, vendo mesmo nisso uma traição à grande causa da revolução social. “A emancipação do proletariado deve ser obra do próprio proletariado», eis o que ensinavam constantemente Marx e Engels. E para lutar pela sua emancipação económica, o proletariado deve conquistar certos direitos políticos. Além disso, Marx e Engels viram com toda a clareza que uma revolução política na Rússia teria também uma enorme importância para o movimento operário na Europa ocidental. A Rússia autocrática foi sempre o baluarte de toda a reacção europeia. A situação internacional excepcionalmente favorável em que a Rússia se encontrou depois da guerra de 1870, que semeou durante muito tempo a discórdia entre a França e a Alemanha, não podia evidentemente deixar de fazer aumentar a importância da Rússia autocrática como força reacionária. Só uma Rússia livre, que não tivesse necessidade de oprimir os Polacos, os Finlandeses, os Alemães, os Arménios e outros pequenos povos, nem de lançar incessantemente a França e a Alemanha uma contra a outra, permitiria à Europa contemporânea respirar aliviada do peso das guerras, enfraqueceria todos os elementos reacionários da Europa e aumentaria as forças da classe operária europeia. Por isso mesmo, Engels advogou calorosamente a instauração da liberdade política na Rússia no próprio interesse do movimento operário do Ocidente. 

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UMA VIDA DEDICADA A LUTA TEÓRICA E POLÍTICA PELA EMANCIPAÇÃO DO PROLETARIADO 

Fredrich Engels nasceu na Alemanha há 200 anos, em 28 de novembro de 18290, em Barmen (hoje um subúrbio de Wuppertal), foi um jovem muito promissor a quem o pai, um industrial do setor têxtil, tinha negado a possibilidade de estudar na universidade, em vez disso mandando-o para a sua empresa. Assim, Engels aprendeu por si próprio com um apetite voraz pelo conhecimento e assinava os seus artigos com um pseudónimo para evitar conflitos com a sua família conservadora e fortemente religiosa. Tornou-se ateu e os dois anos que passou em Inglaterra – para onde foi mandado com a idade de 22 anos para trabalhar em Manchester, nos escritórios da fiação de algodão Ermen & Engels – foram decisivos para a maturação das suas convicções políticas. Foi então que observou na primeira pessoa os efeitos da exploração capitalista no proletariado, da propriedade privada e da competição entre indivíduos. Contactou com o movimento cartista e apaixonou-se por uma trabalhadora irlandesa, Mary Burns, que desempenhou um papel central no seu desenvolvimento.

Jornalista brilhante, publicou na Alemanha descrições das lutas sociais inglesas e escreveu na imprensa anglófona sobre os avanços sociais em curso no continente. O artigo “Esboços de uma Crítica da Economia Política”, publicado nos Anais Franco-Alemães em 1844, suscitou grande interesse em Marx, que na altura tinha decidido consagrar todas as suas energias ao mesmo tema. Os dois iniciaram então uma colaboração teórica e política que duraria para o resto das suas vidas.

Em 1845, Engels publicou em Alemão o seu primeiro livro, A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra. O subtítulo enfatizava que era baseado “na observação direta e em fontes genuínas” e escreveu no prefácio que o conhecimento real das condições de vida e de trabalho dos proletários era “absolutamente necessário para se conseguir uma base sólida para as teorias socialistas”. O livro haveria de ter sequelas em muitas investigações posteriores. Uma dedicatória de abertura, “à classe trabalhadora da Inglaterra”, salientava ainda mais que o seu trabalho “de campo” lhe tinha dado um “conhecimento das vidas reais dos trabalhadores” direto e não abstrato. Nunca foi discriminado ou “tratado por eles como um estrangeiro” e estava feliz por ver que eles estam libertos da “terrível maldição da estreiteza nacional e da arrogância nacional”.

No mesmo ano, quando o governo francês expulsou Marx devido às suas atividades comunistas, Engels seguiu-o até Bruxelas. Publicaram A Sagrada Família, ou a Crítica do criticismo crítico: Contra Bruno Bauer e Companhia (o seu primeiro livro conjunto com Marx) e os dois produziram um volumoso manuscrito não publicado – A Ideologia Alemã – que foi abandonado à “crítica corrosiva dos ratos”. Neste período, Engels foi para Inglaterra com o seu amigo e isso permitiu mostrar-lhe o que tinha já visto e compreendido sobre o modo capitalista de produção. Marx finalmente abandonou a crítica da filosofia pós-hegeliana e começou a longa jornada que conduziu, vinte anos mais tarde, ao primeiro volume do Capital. Então, os dois amigos escreveram o Manifesto do Partido Comunista (1848) e participaram nas revoluções de 1848.

Em 1849, na sequência da derrota da revolução, Marx foi forçado a ir para Inglaterra e Engels depressa cruzou o canal para se lhe juntar. Marx alojou-se Londres, enquanto que o amigo foi tomar conta do negócio de família em Manchester a uns 300 quilómetros de distância. Tornou-se o “segundo violino”, nas suas palavras, para se sustentar e ajudar o seu amigo (que ficava frequentemente sem rendimento), aceitando gerir a fábrica do seu pai em Manchester até 1870.

Durante estas duas décadas, depois das quais Engels abandonou o negócio e conseguiu finalmente voltar a juntar-se ao seu amigo na capital inglesa, os dois homens viveram o período mais intenso das suas vidas, comparando, várias vezes por semana, notas sobre os principais acontecimentos políticos e económicos da altura. A maior parte das 2.500 cartas que trocaram são datas destas duas décadas, durante as quais também enviaram 1.500 peças de correspondência a ativistas e intelectuais de cerca de vinte países. A este impressionante total devem ser somadas umas boas 10.000 cartas para Engels e Marx de terceiros e outras 6.000, as quais, apesar de se lhes termos perdido o rasto, temos a certeza de terem existido. É um tesouro inestimável, contendo ideias que, em alguns casos, acabaram por não desenvolver cabalmente nos seus escritos.

Poucas correspondências do século XIX conseguem ostentar referências tão eruditas quanto as que fluíram das canetas dos dois revolucionários comunistas. Marx lia nove línguas e Engels dominava doze. As suas cartas são notáveis pelas suas constantes mudanças de línguas e pelo número de citações, incluindo em latim e grego antigo. Os dois humanistas eram também grandes amantes de literatura. Marx conhecia passagens de Shakespeare de cor e nunca se cansava de folhear os seus volumes de Ésquilo, Dante e Balzac. Engels foi durante muito tempo o presidente do Instituto Schiller de Manchester e adorava Aristóteles, Goethe e Lessing. Junto com as constantes discussões sobre acontecimentos internacionais e possibilidades revolucionárias, muitas das suas trocas de correspondência diziam respeito aos avanços mais importantes na tecnologia, geologia, química, física, matemática e antropologia. Marx considerou sempre Engels um interlocutor indispensável, consultando a sua voz crítica sempre que tinha de tomar posição sobre um tema controverso.

A relação humana, política e intelectual entre os dois era intensa. Marx confidenciava todas as suas dificuldades pessoais a Engels, começando pelas suas terríveis dificuldades materiais e os inúmeros problemas de saúde que o atormentaram durante décadas. Engels mostrou total auto-abnegação ao ajudar Marx e a sua família, fazendo sempre tudo o que podia para assegurar-lhes uma existência digna e facilitar a finalização do Capital. Marx ficou para sempre grato pela sua assistência financeira, como podemos ver no que escreveu numa noite de agosto de 1867, poucos minutos depois de ter acabado de corrigir as provas do Volume Um: “Devo-te apenas a ti que isto tenha sido possível.”

Até durante esses vinte anos, nunca deixou de escrever. Em 1850 publicou A Guerra Camponesa na Alemanha, uma história das revoltas de 1524-25, na qual tentava mostrar o quão similar tinha sido o comportamento da classe média relativamente ao da pequena-burguesia durante a revolução de 1848-49 e quão responsável tinha sido pelas derrotas que se lhe seguiram. De forma a permitir que o seu amigo dedicasse mais tempo à finalização dos seus estudos de economia, entre 1851 e 1862 também escreveu quase metade das cinco centenas de artigos que Marx assinou no New-York Tribune (o jornal com maior circulação nos Estados Unidos). Fez reportagens para o público americano sobre o curso e resultados possíveis de muitas das guerras que ocorriam na Europa. Não raramente provou ser capaz de prever desenvolvimentos e antecipar estratégias militares utilizadas em várias frentes, ganhando a alcunha pela qual era conhecido pelos seus camaradas: “o General”. A sua atividade jornalística continuou durante muito tempo e, em 1870-71, publicou as suas Notas sobre a Guerra Franco-Prussiana, uma série de 60 artigos escritos para o diário anglófono Pall Mall Gazette em que analisava os eventos que precederam a Comuna de Paris. Estas foram bastante apreciadas e testemunharam a sua perspicácia nestas matérias.

Ao longo dos 15 anos seguintes, Engels elaborou as suas contribuições teóricas principais numa série de artigos ocasionais que se opunham às posições de adversários políticos dentro do movimento dos trabalhadores e procuravam clarificar temas controversos. Entre 1872 e 1873 escreveu uma série de três artigos para o Volksstaat que também saíram, como um panfleto, com o título A Questão da Habitação. A intenção de Engels era opor-se à disseminação das ideias de Pierre-Joseph Proudhon na Alemanha e tornar claro para os trabalhadores de que a política de reformas não poderia substituir a revolução proletária. O Anti-Dühring, publicado em 1878, que descreveu como “uma exposição mais ou menos alinhavada do método dialético e da perspectiva comunista do mundo”, tornou-se uma referência crucial para a formação da doutrina marxista. Apesar de termos de distinguir entre os trabalhos de popularização empreendidos por Engels, em polémica aberta contra os atalhos simplistas do seu tempo, e a vulgarização levada a cabo pela geração seguinte da Social-Democracia Alemã, o seu recurso às ciências naturais abriu caminho a uma conceção evolucionária dos fenómenos sociais que diminuía as análises muito mais matizadas de Marx. Socialismo: Utópico e Científico (1880), um retomar de três capítulos do Anti-Dühring para efeitos pedagógicos, teve um impacto ainda maior do que o texto original. Mas, apesar dos seus méritos e do facto de terem circulado quase tão amplamente como o Manifesto do Partido Comunista, as definições de “ciência” e de “socialismo científico” podem ser vistas como um exemplo do autoritarismo epistemológico subsequentemente usado pela vulgata marxista-leninista para eludir qualquer discussão crítica das teses dos “fundadores do comunismo”. A Dialética da Natureza, fragmentos de um projeto no qual Engels trabalhou com muitas interrupções entre 1873 e1883, tem sido objeto de enorme controvérsia. Para alguns era a pedra angular do Marxismo, para outros o principal culpado do nascimento do dogmatismo Soviético. Hoje em dia deve ser lido como um trabalho incompleto, que mostra as limitações de Engels, mas também o potencial contido na sua crítica ecológica. Apesar do seu uso da dialética ter certamente reduzido a complexidade teórica e metodológica de pensamento de Marx, não é correto – como alguns fizeram maldosa e superficialmente no passado – responsabilizá-lo por tudo o que não gostam nos escritos de Marx e culpar apenas Engels pelos erros teóricos ou até pelas derrotas práticas.

Em 1844, Engels publicou as Origens da Família, da Propriedade Privada e do Estado, uma análise dos estudos antropológicos conduzidos pelo americano Lewis Morgan, que tinha descoberto que as relações matriarcais precederam historicamente as relações patriarcais. Para Engels, esta era uma revelação tão importante acerca das origens da humanidade quanto “a teoria de Darwin [foi] para a biologia e a teoria de Marx para a economia política”. A família continha já os antagonismos que mais tarde seriam desenvolvidos na sociedade e no Estado. O primeiro tipo de opressão a surgir na história humana “coincidiu com a opressão do sexo feminino pelo masculino”. No que diz respeito à igualdade de género, tal como no caso das lutas anticoloniais, nunca hesitou em defender – e em expor com convicção – a causa da emancipação. Finamente, em 1886, também lançou um trabalho polémico cujo alvo era o ressurgimento do idealismo nos círculos académicos alemães, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã (1886). 

Durante os doze anos em que sobreviveu a Marx, dedicou-se ao legado literário do amigo e à liderança do movimento internacional de trabalhadores. Uma série de peças jornalísticas nos principais jornais socialistas do seu tempo, incluindo a Die Neue Zeit, Le Socialiste e a Critica Sociale, as saudações a congressos partidários, assim como as centenas de cartas que ele escreveu nesse período possibilitam que apreciemos de forma mais profunda a sua contribuição para o crescimento dos partidos operários na Alemanha, França e Grã-Bretanha, numa série de assuntos organizativos e teóricos. Alguns destes dizem respeito ao nascimento da Segunda Internacional, cujo congresso de fundação teve lugar a 14 de julho de 1889, e a muitos dos seus debates. Ainda mais importante, consagrou as suas melhores energias à difusão do marxismo. Sobretudo, assumiu a tarefa extremamente difícil de preparar para publicação os esboços dos Volumes Dois e Três do Capital que Marx não tinha conseguido completar. Também supervisionou as novas edições de trabalhos previamente publicados, uma série de traduções, e escreveu prefácios e posfácios para várias republicações de trabalhos de Marx e seus. Em resumo, uma vida dedicada a revolução mundial

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O “SEGUNDO VIOLINO”

Desde o início do século XX, desenvolveu-se, no campo da intelectualidade de esquerda, uma forte corrente que buscou minimizar – ou mesmo desqualificar – as contribuições de Engels ao processo de construção do marxismo. O conflito ganhou novos contornos com a publicação, nos anos 1930, dos livros Manuscritos econômico-filosóficos e A dialética da natureza. O primeiro havia sido escrito por Marx em 1844; o segundo, elaborado por Engels na década de 1870. Estes trabalhos, redigidos em períodos e sob perspectivas muito distintas, passaram a ser considerados provas definitivas da existência de profundas diferenças teóricas e metodológicas entre esses dois grandes pensadores socialistas. Se pesquisarmos o conjunto dos textos destes dois intelectuais revolucionários socialistas não encontraremos nenhum indício da existência de diferenças significativas de opinião sobre qualquer dos temas centrais tratados por eles; e sabemos, por exemplo, o quanto Marx era exigente – e mesmo intransigente – no campo da “luta de ideias”. Ele não era homem de fazer concessões políticas ou teóricas. 

Entre outras coisas, Engels passou a ser acusado de ter criado os pressupostos teóricos e políticos do reformismo social-democrata. Os alvos principais – mas não exclusivos – dos críticos foram os seus textos filosóficos, nos quais ele buscou demonstrar a existência de um movimento dialético também na natureza. Uns o acusaram de tentar naturalizar a história humana; outros, contraditoriamente, de buscar humanizar a natureza.

Houve, assim, uma verdadeira subversão da opinião amplamente hegemônica no interior do movimento socialista até as primeiras décadas do século XX, quer na vertente social-democrata quer na comunista. Num artigo fúnebre, escrito em 1895, Lênin escreveu: “Desde o dia em que o destino juntou Karl Marx e Friedrich Engels, a obra a que os dois consagraram toda a vida converteu-se numa obra comum”. E concluiu: “o proletariado pode dizer que a sua ciência foi criada por dois sábios, dois lutadores, cuja amizade ultrapassa tudo o que de mais comovente oferecem as lendas dos antigos”. Não há nada de exagero nesta afirmação leniniana. 

Os críticos muitas vezes utilizaram a própria modéstia de Engels para atacá-lo. Buscaram demonstrar que ele foi, em todos os aspectos, um pensador muito inferior a Marx. Pior: alguém que havia contribuído para descaracterizar a obra do genial amigo. 

Em 1884 – ainda sob o impacto da morte de Marx –, Engels escreveu: “Durante toda a minha vida tenho feito aquilo para que fui talhado: ser um segundo violino – e creio que me tenho saído muito bem nesta função. Eu sou feliz por ter tido um maravilhoso primeiro violino: Marx.”  Numa das notas em seu Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, seguiu no mesmo tom: “Não posso negar que antes e durante a minha colaboração de quarenta anos com Marx tive certa participação independente, tanto na fundação quanto na elaboração da teoria (…). A contribuição que dei (…) poderia ter sido trazida por Marx mesmo sem mim. Ao contrário, o que Marx fez eu não estaria em condições de fazer. Marx estava mais acima, via mais longe, tinha uma visão mais ampla e mais rápida que todos nós. Marx era um gênio; nós no máximo, tínhamos talento”. Engels via-se, no máximo, como um bom segundo violino. Mas, na sinfonia que compuseram juntos e que embalou as revoluções do século XX, o segundo violino foi imprescindível. 

Marx e Engels, desde que se reencontraram em 1844, estabeleceram um trabalho em comum – procedimento raro entre pensadores de tal porte. Na juventude, produziram conjuntamente A sagrada família, A ideologia alemã e o Manifesto do Partido Comunista. Estabeleceram também certa divisão de trabalho intelectual e político. Por esse motivo, desde o início do século XX, suas obras foram publicadas conjuntamente. Fato muito criticado pelos intelectuais “marxistas” antiengelsianos. 

Foi Engels, em 1887, que elucidou esta questão: “Em consequência da divisão de trabalho existente (…) tocou-me a tarefa de apresentar nossos pontos de vista na imprensa periódica, portanto especialmente na luta contra as opiniões adversas; de modo que sobrasse tempo a Marx para a elaboração de sua obra maior”. Dentro desse esquema, Engels produziu AntiDühring (1877), Do socialismo utópico ao científico (1880), As origens da família, da propriedade privada e do Estado (1884), Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886) e os manuscritos que, depois de sua morte, dariam origem à Dialética da natureza. Mesmo estes textos, muito criticados pela maioria dos “marxistas ocidentais”, tiveram o dedo, ou melhor, a contribuição intelectual, do velho Marx. 

No Prefácio à segunda edição de AntiDühring, o autor nos deu conta da parte que coube ao amigo nesta obra por muitos considerada problemática: “Tendo sido criada por Marx (…) a concepção exposta neste livro não conviria que eu publicasse à revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da parte segunda, consagrada à economia (…), foi escrito por Marx. Infelizmente, eu tive de resumir por motivos extrínsecos. Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialização de cada um”. Eis uma prova testemunhal do crime cometido por Marx contra sua própria teoria. 

Mas a bête noire dos marxistas antiengelsianos é, sem dúvida, A dialética da natureza. Os manuscritos que deram origem a ela se inseriam no combate teórico que travavam os socialistas na segunda metade do século XIX. Para cumprir esta missão, delegada pela social-democracia alemã, Engels passou oito anos estudando ciências naturais. No entanto, o trabalho não pôde ser concluído por ele, e somente em 1925 viria a público. Nascido como resposta ao materialismo vulgar – mecanicista – do século XIX, seria recebido como prova tardia de um suposto viés positivista e naturalista do autor. 

Mesmo aqui, onde pensavam “pegar” apenas Engels, acabaram, indiretamente, atingindo o próprio Marx, pois este foi um leitor privilegiado dos manuscritos e, inclusive, fez comentários positivos às margens daquele trabalho. Os biógrafos afirmam que ocorreu uma intensa troca de opiniões entre os dois amigos e Marx dizia estar ansioso para ver a obra publicada. Caso haja erros positivistas neste trabalho, a responsabilidade caberia aos dois e não apenas a um deles.

Se Marx não se dedicou a escrever sobre a dialética da natureza foi porque, na divisão de trabalho já citada, esta tarefa coube a Engels. O silêncio sobre o tema não significava que Marx não o considerasse importante. Pelo contrário. Existe, inclusive, uma significativa correspondência entre ambos tratando do assunto e publicada sob o título Cartas sobre as ciências da natureza e as matemáticas. 

Dentro do esquema teórico desenvolvido por eles, estavam certos ao pensar a dialética como uma lei geral do desenvolvimento tanto da natureza quanto da sociedade. Estavam corretos também ao reafirmarem que a história humana é um prolongamento da história natural. Os homens fazem parte da natureza e a ela não são estranhos. Toda ciência moderna comprova isso. É claro que – mesmo estando dentro de um mesmo esquema teórico geral – os métodos para analisar a natureza e as sociedades humanas eram diferentes, e Engels bem o sabia. Afinal, foi ele um dos fundadores do materialismo histórico. Veremos isso mais à frente. 

Engels referiu-se à obra Origem da família, da propriedade privada e do Estado como a execução de um testamento: o testamento de Marx. Este “dispunha-se a expor, pessoalmente, os resultados das investigações de Morgan em relação com as conclusões da sua (até certo ponto posso dizer da nossa) análise materialista da história, para esclarecer assim, e somente assim, todo seu alcance. (…) Meu trabalho só debilmente pode substituir aquele que o meu falecido amigo não chegou a escrever. Disponho, entretanto, não só dos enxertos detalhados que Marx retirou à obra de Morgan, como também de suas anotações críticas, que reproduzo aqui sempre que cabíveis”, escreveu Engels. 

Mesmo no campo da economia política, Engels foi pioneiro em relação a Marx. O primeiro trabalho dele nessa área foi Esboço de uma crítica da economia política, publicado nos Anais franco-alemães em 1843. Muitos anos mais tarde, Marx diria que esse texto era “um genial esboço de crítica das categorias econômicas”. Constatou Lênin: “A relação com Engels contribuiu, sem dúvida, para que Marx se decidisse a ocupar-se do estudo de economia política, ciência em que suas obras produziram uma revolução”. Sob inspiração de Engels, Marx começou a dar os primeiros passos no sentido da elaboração de O Capital. 

Entre 1842 e 1844, Engels viveu em Manchester – uma das principais cidades industriais da Inglaterra e do mundo. Por isso mesmo, foi também o primeiro da dupla a entrar em contato com o proletariado moderno e seus representantes mais avançados, a Liga dos Justos e os cartistas ingleses. Ao voltar à Alemanha publicou A situação da classe operária na Inglaterra. Na sua breve passagem por Paris reencontrou Marx e juntos verificaram o alto grau de concordância teórica e política existente entre eles, e deram início a uma colaboração que duraria toda a vida. 

Os dois chegaram quase ao mesmo tempo – por vias diferentes – aos mesmos resultados teóricos. “Em Manchester, escreveu Engels em 1885, fui levado a atentar para o fato de que os fatores econômicos, até então ignorados ou ao menos subestimados pelos historiadores, representam papel decisivo no desenvolvimento do mundo moderno. Aprendi que os fatores econômicos eram a causa básica do choque entre diferentes classes na sociedade. E compreendi que, num país altamente industrializado, como a Inglaterra, o choque entre classes sociais está na própria raiz da rivalidade entre os partidos e é de fundamental significação para traçar o curso da história moderna”. Conteúdo muito semelhante ao trecho do Prefácio à contribuição à crítica da economia política, no qual Marx fala de suas descobertas, ocorridas na mesma época. Por isso, parece infundada a afirmação de que sem Marx, Engels não teria chegado por vias próprias ao materialismo histórico. 

A principal testemunha disso é o próprio Marx que, na sua Contribuição à Crítica da Economia Política, afirmou: “Friedrich Engels, com quem (…) eu mantinha constante correspondência, por meio da qual trocávamos ideias, chegou por outro caminho – consulte-se a Situação das classes trabalhadoras na Inglaterra – ao mesmo resultado que eu”. Ou seja, a descoberta e desenvolvimento do materialismo-histórico é obra inseparável desses dois formidáveis pensadores, tendo por base o que o pensamento e a ação humana haviam produzido de melhor. 

Num período de sua vida, precisando complementar suas receitas sempre curtas, Marx aceitou o convite do New York Daily Tribune para produzir artigos sobre a situação europeia. O problema é que ele estava atarefado redigindo sua obra magna e ainda não dominava suficientemente o inglês. Engels, então, aceitou substituí-lo na empreitada e escreveu periodicamente para o jornal estadunidense, assinando pelo amigo. Até recentemente a verdadeira autoria desses artigos não havia sido descoberta. Uma prova a mais da generosidade de Engels e da completa afinidade de opiniões entre esses dois personagens. 

Podemos dizer que esta parceria profícua continuou bem depois da morte de Marx. Por exemplo, foi Engels que publicou os livros II e III de O Capital, decifrando os verdadeiros garranchos deixados por Marx e dando-lhes certa organização. Esse fato levou alguns estudiosos, corretamente, a questionarem a ausência do nome de Engels naquela monumental obra da economia política contemporânea. Escreveu Lênin: “editando os tomos II e III de O Capital, Engels ergueu ao genial amigo um grandioso monumento no qual, involuntariamente, tinha gravado também o seu próprio nome em letras indeléveis. Estes dois tomos de O Capital são, com efeito, obra de ambos, de Marx e Engels”. 

O pesquisador soviético David Riazanov, baseando-se em Lênin, disse ser Engels um “colaborador invisível” na elaboração dos artigos de Marx que comporiam o livro Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte. Esta afirmação está assentada numa correspondência de Engels a Marx, datada de 3 de dezembro de 1851 – ou seja, um dia depois do golpe de Estado. Vamos à carta: “A história da França” – escreveu Engels – “alcançou um estágio completamente cômico. Não poderia haver nada mais ridículo que esta paródia de 18 Brumário realizada em tempos de paz, com a ajuda de soldados descontentes, pelo ser mais insignificante do mundo e que não encontrou até agora (…) nenhuma resistência (…). Nem torturando o espírito durante todo um ano se poderia criar comédia mais linda. Na verdade, parece que o velho Hegel dirige de sua tumba a história no papel de espírito mundial, cuidando com a maior atenção a que todos os acontecimentos apareçam duas vezes: a primeira sob a forma de tragédia e a segunda na forma miserável de farsa. Caussidiere por Danton, Louis Blanc por Robespierre, Barthelemy por Saint-Just, Flocon por Carnot, e o lunático Louis Napoleão, com meia dúzia de oficiais desconhecidos e cheios de dívidas em vez do pequeno cabo Napoleão I com sua turma de marechais”. Estas palavras seriam reproduzidas quase literalmente no início da magistral obra de Marx, considerada um primor na aplicação do método dialético ao estudo de uma conjuntura histórica. 

Não deixa de ser irônico que um dos maiores críticos do positivismo e do economicismo no interior do movimento socialista tenha sido, posteriormente, acusado como seu principal introdutor e incentivador. Justo Engels, que tinha plena consciência dos perigos que representavam esses desvios teórico-metodológicos. Por isso mesmo, dedicou seus últimos anos de vida a combater aqueles que acreditavam ser a sociedade um simples reflexo mecânico da base econômica e valorizar a importância das outras esferas sociais, como a ideologia e a política. 

Numa carta a Bloch, escrita em 1890, afirmou: “Segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida material. Nem Marx nem eu nunca afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isto. Se alguém tergiversa, e modifica afirmando dizendo que o fator econômico é o único fator determinante, converterá aquela tese em uma frase vazia, abstrata e absurda”. Na sua obra mais polêmica, A dialética da natureza, Engels criticou duramente os que advogavam uma “concepção naturalista da história”, pois estes encaravam “o problema como se exclusivamente a natureza atuasse sobre os homens e como se as condições naturais determinassem, como um todo, o seu desenvolvimento histórico. Essa concepção unilateral esquece que o homem também reage sobre a natureza, transformando-a e criando para ele novas condições de existência”. 

Em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã escreveu: “a história do desenvolvimento da sociedade difere substancialmente, em um ponto, da história do desenvolvimento da natureza. Nesta (…), os fatores que atuam uns sobre os outros e em cujo jogo mútuo se impõe a lei geral, são todos agentes inconscientes e cegos (…). Ao contrário, na história da sociedade, os agentes são todos homens dotados de consciência, que atuam movidos pela reflexão ou a paixão, perseguindo determinados fins; aqui, nada acontece sem uma intenção consciente, sem um fim proposto”. Nada mais distante do determinismo e do fatalismo econômico. 

Segundo David Mclellan, “Engels explorou seu imenso talento nas áreas mais variadas possíveis: foi linguista de primeira categoria, importante crítico militar, pelo menos se igualou a Marx como historiador, foi pioneiro da antropologia e reconhecido orientador de uma dúzia de partidos marxistas então emergentes”. Sobre a capacidade de Engels enquanto historiador, afirmou Perry Anderson: “Vem sendo moda depreciar a contribuição relativa de Engels na criação do materialismo histórico. Àqueles que se acham ainda inclinados a aceitar esta difundida noção, é necessário dizer calma e incisivamente: os juízos históricos de Engels são quase sempre superiores aos de Marx. Ele possuía o conhecimento mais profundo da história europeia e uma compreensão mais segura das suas estruturas sucessivas e relevantes”. Entre suas contribuições estaria a análise do fenômeno do bonapartismo na França e na Prússia. 

Um detalhe importante: quando se retomou o projeto de edição das obras completas de Marx e Engels (a Mega II) novamente foi colocado o problema de publicar ou não os textos desses dois autores conjuntamente numa mesma coleção. A conclusão a que chegaram os estudiosos de várias universidades e instituições é de que seria impossível separá-las. Manteve-se, assim, a mesma linha editorial adotada pela social-democracia alemã e pelos pesquisadores soviéticos. O cientista político Michael Krätke afirmou: “a publicação de todos os manuscritos de Marx deveria colocar um fim na ‘exagerada e ilimitada repreensão feita a Engels’”. Continua ele: “Enquanto não se tinha acesso aos manuscritos, essa crítica era puramente especulativa, pois se apoiava em falsificações facilmente demonstráveis do texto marxiano. Hoje, porém, elas podem ser caracterizadas como sendo insustentáveis”. 

A grande afinidade intelectual e política entre Marx e Engels tornou-se a base política e teórica do socialismo científico que reivindicamos até hoje, 200 anos após o nascimento do “Segundo Violino”!