segunda-feira, 25 de outubro de 2021

LIÇÕES DE OUTUBRO: TROTSKY FAZ UM BALANÇO DO TOMADA DO PODER PELOS BOLCHEVIQUES 

“Se é verdade que na Revolução de Outubro tivemos sorte, outro tanto não se poderá dizer do seu lugar na nossa literatura. Ainda não dispomos de uma única obra que dê um quadro geral da revolução de Outubro, fazendo sobressair os seus principais momentos do ponto de vista político e organizativo. Além disso, ainda não foram editados os materiais que caracterizam os diferentes aspectos da preparação da revolução ou a própria revolução. Publicamos muitos documentos e materiais sobre a história da revolução e do Partido, antes e depois de Outubro; todavia, especificamente a Outubro, consagra-se muito menos atenção. Realizado o golpe de força, parece que decidimos nunca mais ter que o repetir; parece que não esperávamos uma utilidade direta do estudo de Outubro e das condições da sua preparação imediata, quanto às tarefas urgentes de organização ulterior.”

Contudo, semelhante apreciação, mesmo que seja em parte inconsciente, está profundamente errada, revestindo, além do mais, um carácter de estreiteza nacional. Se já não temos que repetir a experiência da Revolução de Outubro, isto não significa que esta experiência nada nos tenha a ensinar. Somos uma parte da Internacional; ora o proletariado dos outros países tem que resolver ainda o seu problema de Outubro; e no decurso do ano passado tivemos provas bastante convincentes de que os partidos comunistas mais adiantados do Ocidente, não só não assimilaram a nossa experiência, como nem sequer a conhecem do ponto de vista dos fatos. Na verdade, pode-se fazer notar que é impossível estudar Outubro e mesmo editar os materiais que lhe dizem respeito, sem levar de novo a exame as antigas divergências. Porém, seria muito miserável abordar a questão de tal forma. Os desacordos de 1917 eram evidentemente muito profundos e estavam longe de ser fortuitos. Mas seria muito mesquinho tentar agora fazer deles uma arma de luta contra aqueles que então se enganaram; e mais inadmissível seria ainda que, por considerações de ordem pessoal, se escamoteassem os problemas capitais da revolução de Outubro, de uma importância internacional.

O ano passado sofremos duas penosas derrotas na Bulgária: primeiro, o P. C. B., por considerações doutrinárias fatalistas, deixou escapar um momento excepcionalmente favorável a uma acção revolucionária (levantamento dos camponeses depois do golpe de força de Tsankof, em Junho); a seguir, esforçando-se por reparar o erro, lançou-se na insurreição de Setembro sem ter preparado as suas premissas políticas e organizativas. A revolução búlgara devia ser uma introdução à revolução alemã. Infelizmente, esta deplorável introdução teve um desenvolvimento ainda pior na própria Alemanha. No segundo semestre do ano passado, observamos neste país uma demonstração clássica da forma como se pode deixar escapar uma situação revolucionária excepcional, de uma importância histórica mundial. Também as experiências búlgara e alemã não foram objecto de uma apreciação suficientemente completa e concreta. O autor destas linhas traçou o esquema do desenvolvimento dos acontecimentos alemães do ano passado (ver os capítulos «A uma viragem» e «A etapa que atravessamos» do opúsculo «O Oriente e o Ocidente»). Tudo o que se passou desde então confirmou inteiramente este esquema. Ninguém tentou dar outra explicação. Não nos basta porém um esquema; é preciso um quadro completo, com base em factos, do desenvolvimento dos acontecimentos da Alemanha no ano passado, um quadro que esclareça as causas desta penosa derrota. Todavia, é difícil pensar numa análise dos acontecimentos da Bulgária e da Alemanha, quando ainda não traçámos um quadro político e tático da Revolução de Outubro. Ainda não nos apercebemos exactamente do que fizemos e de como o fizemos. Depois de Outubro, parecia que os acontecimentos na Europa se desenvolveram por si próprios, com tal rapidez, que nem sequer nos deixariam tempo para assimilar teoricamente as lições de Outubro. Verificou-se, porém, que na ausência de um partido capaz de o dirigir, o golpe de força proletário tornava-se impossível. O proletariado não pode conquistar o poder através de uma insurreição espontânea: mesmo num país industrialmente muito desenvolvido e altamente culto, como a Alemanha, a insurreição espontânea dos trabalhadores (em Novembro de 1918) apenas conseguiu transferir o poder para as mãos da burguesia. Apoiando-se nas suas riquezas, na sua «cultura», nas suas inúmeras ligações ao antigo aparelho estatal, uma classe possidente é capaz de conquistar o poder arrancado a outra classe possidente. Quanto ao proletariado, nada lhe pode substituir o Partido. A partir de meados de 1921 é que começa verdadeiramente o período de organização dos Partidos Comunistas («luta pelas massas», «frente única», etc.). As tarefas de Outubro recuam então para longe. Simultaneamente, o estudo de Outubro é relegado para último plano. O ano passado defrontámo-nos com as tarefas da revolução proletária. Já é tempo de reunir todos os documentos, de editar todos os materiais e proceder ao seu estudo.

Embora, como é evidente, saibamos que cada povo, cada classe e até cada partido se educam principalmente a partir da sua própria experiência, de modo nenhum isto significa que a experiência dos outros países, classes e partidos seja de pouca importância. Sem o estudo da grande Revolução Francesa, da Revolução de 1848 e da Comuna de Paris, nunca teríamos realizado a revolução de Outubro, mesmo com a experiência de 1905. Mas, para o estudo da revolução vitoriosa de 1917, nem sequer realizamos um décimo do trabalho que dispendemos para a de 1905. É certo que não vivemos num período de reacção, nem na emigração. Em contrapartida, as forças e os meios de que actualmente dispomos não podem ser comparados com os desses penosos dias. É preciso pôr na ordem do dia, no Partido e em toda a Internacional, o estudo da revolução de Outubro. É preciso que todo o nosso Partido e particularmente as Juventudes, estudem minuciosamente a experiência de Outubro, que nos forneceu uma verificação incontestável do nosso passado e nos abriu uma ampla porta para o futuro. A lição alemã do ano passado não só é uma séria lembrança, mas também um ameaçador aviso. Na verdade, pode-se dizer que o conhecimento mais profundo do desenvolvimento da revolução de Outubro não teria sido para o nosso Partido alemão uma garantia de vitória. Mas semelhante raciocínio não adianta nada. É certo que o estudo da revolução de Outubro, só por si, é insuficiente para nos garantir a vitória nos outros países; contudo, é possível que surjam situações em que todas as permissas da revolução existem, salvo uma direção clarividente e resoluta do Partido, baseando-se na compreensão das leis e dos métodos da revolução. Tal era precisamente a situação na Alemanha, o ano passado. Pode vir a repetir-se noutros países. Ora, para o estudo das leis e dos métodos da revolução proletária, não há fonte mais importante, até agora, do que a nossa experiência de Outubro. Os dirigentes dos Partidos comunistas europeus que não estudassem, de maneira crítica e em todos os pormenores, a história do golpe de força de Outubro, parecer-se-iam com esse chefe que, ao preparar-se actualmente para novas guerras, descurasse a experiência estratégica, táctica e técnica da última guerra imperialista. Semelhante chefe votaria à derrota os seus exércitos.

O Partido é o instrumento essencial da Revolução proletária. A nossa experiência de um ano (de Fevereiro de 1917 a Fevereiro de 1918) e as experiências complementares da Finlândia, Hungria, Itália, Bulgária e Alemanha, quase permitem erigir em lei a inevitabilidade de uma crise no Partido, quando este passa do trabalho de preparação revolucionária à luta direta pelo poder.

Regra geral, as crises no Partido surgem a cada viragem importante, como prelúdio ou consequência. É que cada período de desenvolvimento do Partido tem os seus traços especiais, exigindo determinados hábitos e métodos de trabalho. Uma viragem táctica acarreta uma ruptura mais ou menos importante nestes hábitos e métodos: nela reside a causa direta dos choques e das crises: «A uma viragem brusca da história - escrevia Lenine em Julho de 1917 - acontece muito frequentemente, até aos partidos avançados, não se chegarem a habituar à nova situação num maior ou menor espaço de tempo, repetindo as palavras de ordem que, embora justas ontem, hoje perderam todo o seu sentido; coisa que sucede tão «subitamente» como a viragem histórica». Daí um perigo: se a viragem tiver sido demasiadamente brusca ou inesperada e o período posterior tiver acumulado demasiados elementos de inércia e de conservadorismo nos órgãos dirigentes do Partido, este revelar-se-á incapaz de assumir a direcção no momento mais grave, para o qual se preparou durante anos ou dezenas de anos. O Partido deixar-se-á corroer por uma crise e o movimento processar-se-á sem objetivo, preparando a derrota.

Um partido revolucionário está submetido à pressão de outras forças políticas. Em cada período do seu desenvolvimento elabora os meios para lhes resistir e as recalcar. Nas viragens tácticas, que comportam reagrupamentos e fricções interiores a sua força de resistência diminui. Daí a possibilidade constante de se desenvolverem consideravelmente os reagrupamentos do partido, formados pela necessidade de viragem táctica, e se tornarem uma base de diferentes tendências de classes.

Se, a cada viragem táctica importante, a observação que acabamos de fazer é justa, é-o tanto mais no que toca às grandes viragens estratégicas. Em política, entende-se por tática, por analogia com a ciência da guerra, a arte de orientar operações isoladas; por estratégia, a arte de vencer, isto é, conquistar o poder. Não fazíamos vulgarmente esta distinção antes da guerra, na época da II Internacional, limitando-nos à concepção da táctica social-democrata. E não era por obra do acaso: a social-democracia tinha uma táctica parlamentar, sindical, municipal; cooperativa, etc. A questão da combinação de todas as forças e recursos, de todas as armas para alcançar a vitória sobre o inimigo, não se levantava na época da II Internacional, pois esta não fixava como tarefa prática a luta pelo poder. Depois de um longo interregno, a Revolução de 1905 pôs novamente na ordem do dia as questões essenciais, as questões estratégicas da luta proletária, garantindo com isto enormes vantagens aos social-democratas revolucionários russos, quer dizer, aos bolcheviques.

Em 1917 começa a grande época da estratégia revolucionária, primeiro para a Rússia depois para toda a Europa. É evidente que a estratégia não impede a táctica: as questões do movimento sindical, da actividade parlamentar, etc., longe de desaparecerem do nosso campo visual, adquirem agora uma importância diferente, como métodos subordinados da luta combinada pelo poder. A táctica está subordinada à estratégia.

Se habitualmente, as viragens tácticas produzem fricções interiores no Partido, com mais forte razão as viragens estratégicas devem provocar abalos muito mais profundos. Ora, a viragem mais brusca é aquela em que o Partido do proletariado passa da preparação, propaganda, organização e agitação para a luta direta pelo poder, à insurreição armada contra a burguesia. Tudo o que há de irresoluto, céptico, conciliador e capitulacionista no interior do Partido, ergue-se contra a insurreição, busca fórmulas teóricas para a sua oposição, encontrando-as já preparadas nos adversários de ontem, os oportunistas. Ainda vamos ter de observar muitas vezes este fenómeno.

No período de Fevereiro a Outubro, ao levar a efeito um largo trabalho de agitação e organização das massas, o Partido fez um último exame, uma derradeira escolha da sua arma antes da batalha decisiva. Durante e após Outubro, verificou-se o valor desta arma numa operação de vasta envergadura. Dedicarmo-nos agora a apreciar os diferentes pontos de vista sobre a Revolução em geral e a Revolução russa em particular, passando em silêncio a experiência de 1917, seria ocuparmo-nos com uma escolástica estéril e não com uma análise marxista da política. Seria agir à laia dessas pessoas que discutem as vantagens de diferentes métodos de natação, mas se recusam obstinadamente a encarar o rio onde estes métodos são aplicados pelos nadadores. Assim como é quando o nadador salta para a água, que melhor se pode verificar o método de natação, também para a verificação dos pontos de vista sobre a Revolução não há nada que chegue à sua aplicação durante a própria Revolução."

Leon Trotsky

Setembro de 1924