Mario Lago, ator, compositor, radialista, poeta, autor
teatral foi um militante comunista, na verdade um stalinista de vida boêmia,
talhada pelas músicas, os cabarés, enfim foi produto do ambiente malandro da
Lapa carioca onde nasceu e da influência política da vitoriosa Revolução de
1917, que iria marcar os debates políticos e culturais de sua adolescência.
Também neste caso, a exceção confirma a regra e nem por esses ricos traços
culturais Lago rompeu com a política de colaboração de classes do velho Partidão.
Ao contrário, seguiu-a disciplinadamente apesar de toda a “heterodoxia” pessoal
que acompanhou sua vida, quando morreu em 30 de maio de 2002. Um tempo vivido
em sua plenitude política, artística e boemia. Não foi casual esse pulsar de
vida pelo simples fato de que nascera no centro do furacão político da luta de
classes e cultural do país nas décadas de 20 a 50. Há exatos 108 anos, Mário Lago nasceu no Rio de Janeiro,
capital federal, em 26 de novembro de 1911, na histórica Rua do Resende, bairro
da Lapa, região à qual confluía toda a boemia carioca e a nata da
“malandragem”. Carioca típico, absorveu profundamente a verve de sua época, a
de um país que emergia para a industrialização capitalista, a economia que aos
poucos suplantava a monocultura cafeeira. Por todos os poros emergiam os
aspectos de uma nova cultura voltada para consumo de massa, tais como a música
que desce da marginalidade dos morros para a cidade, ou seja, o samba outrora
criminalizado rapidamente se populariza através de grandes menestréis como
Chiquinha Gonzaga – a grande precursora desta nova “elite” intelectual que
compôs já em 1899 a marchinha “Ô abre alas” – Noel Rosa, Mario Lago, Cartola,
Pixinguinha, Lamartine Babo e muitos outros. Tratava-se da ascensão de uma nova
classe média urbana gerada pelo crescente processo de industrialização que
tinha como canal de expressão de suas ideias e novos costumes os cafés, os
botequins e cabarés, nos quais eram “elaborados” (vividos) e discutidos entre a
intelectualidade novos padrões estéticos e comportamentais.
O BAIRRO DA LAPA: “O CHÃO DE TODOS OS CAMINHOS”
No final do século XIX e as quatro primeiras décadas foram
as que marcaram a formação cultural do país e uma nova forma de se atuar sobre
a realidade política cuja expressão é a fundação do Partido Comunista do Brasil
em 1922 ainda sob o calor efervescente da Revolução Bolchevique na Rússia em
1917, em pleno esgotamento do modelo econômico agro-exportador cafeeiro. Além
destes fatores “externos”, os elementos familiares foram cruciais para a
formação política na infância e juventude de Mario Lago. Seu avô fora músico e
militante anarquista que combateu ao lado das tropas de Garibaldi na Itália.
Desde cedo, aos 12 anos esteve às voltas com sua primeira experiência política,
ao assistir da janela de sua casa a insólita e macabra execução de um opositor
do governo Arthur Bernardes, o engenheiro Conrado Niemeyer, espancado até a
morte na sede da Polícia – que se localizava em frente a sua casa – comandada
pelo sinistro general Fontoura que se não torturava barbaramente seus
opositores enviava-os à terrível prisão Clevelândia na selva amazônica. Em 1923
entra no Colégio Pedro II, onde sofrera a influência de outro anarquista, o
professor de português José Oiticica. Mario Lago, em seu livro autobiográfico
“Na rolança do tempo” afirma que como fator de formação política “a Lapa foi o
chão de todos os meus passos. Na busca de caminhos e no encontro de atalhos que
descaminham, na primeira ânsia e no último nojo, no último desencanto e na
primeira afirmação”. Cheio de desejo de viver, escreveu certa vez acerca do
envelhecimento e a morte: “Fiz um acordo de coexistência pacífica com o tempo,
nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Um dia, a gente se encontra”.
A ideia da subversão sempre o acompanhou e a vida boemia o
fascinava desde criança, por influência de seu pai, músico conservador que
fazia apresentações também nas “casas suspeitas”. Apesar da desaprovação do
pai, aos 15 anos já frequentava os cabarés da Lapa, convivendo lado a lado com
“malandros” e contraventores, num misto de curiosidade e de libertação do
conservadorismo da família e da sociedade oligarca. Nas suas idas e vindas, no
Cabaré Royal Pigalle, conheceu Cecy, o grande amor de Noel Rosa, que irascível,
compôs a célebre “Pra que Mentir”. Mario Lago, então, asseverou acerca da
“traição” de Cecy “... que às vezes me acarinhava as noites tendo o pensamento
em Noel”.
Naquela época, sob a égide do estado de sítio do governo
Arthur Bernardes (1922 a 1926) e a ditadura civil de Washington Luís (1926 a
1930), e depois sob o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 a 1945), a boemia
converteu-se no refúgio da intelectualidade, o sopro de vida dos artistas e dos
opositores do regime. Artistas populares (Orlando Silva, Carlos Galhardo, Aracy
de Almeida, Francisco Alves etc.) aqui frequentemente se encontravam com os
chamados eruditos do quilate de Villa Lobos, Portinari...
Ao adentrar a década de 30, Mario Lago ingressa na faculdade
de direito na qual conhece importantes dirigentes do PCB, Benigno Rodrigues
Fernandes e Francisco Mangabeira que logo lhe recrutam para o “Socorro
Vermelho”, um grupo de apoio aos presos políticos. Aqui começa a sua militância
política comunista no mundo artístico. Na segunda metade dos anos 40
intelectuais e artistas do PCB respondiam às orientações do stalinismo em nível
internacional, ao modelo estético do “realismo socialista”, o qual pretendia
produzir uma arte “genuinamente” proletária, daí a sua “proximidade” com o
samba no Brasil.
LAGO, O PCB E A TESE DA REVOLUÇÃO POR ETAPAS: EM DEFESA DA
BURGUESIA NACIONAL “PROGRESSISTA”
A predileção pela boemia ainda acompanha Mario Lago durante
um bom período, tanto é verdade que as mais bem-sucedidas canções foram
compostas entre os anos 30 e 40 e deixou sua marca indelével na MPB. Tem como
parceiro Custódio Mesquita nas marchas de carnaval “Menina, Eu Sei de Uma
Coisa” (1935), as peças teatrais “Sambista da Cinelândia” (1936) e “Mamãe eu
quero” (1937). Em 1940, em parceria com Roberto Roberti, cria “Aurora”,
imortalizada na voz de Carmen Miranda. Dois anos depois, compõe junto com
Ataulfo Alves o samba “Ai, que Saudade da Amélia”, na verdade um libelo à
mulher simples (a lavadeira que trabalhava na casa de Aracy de Almeida) e pobre
disposta a qualquer sacrifício para o bem de seu companheiro ou a qualquer pessoa
que a ela recorria, diferentemente das “madames” exigentes, como diz a letra:
“Você só pensa em luxo e riqueza/Tudo o que você vê, você quer/Ai, meu Deus,
que saudade da Amélia/Aquilo sim é que era mulher/Às vezes passava fome ao meu
lado/E achava bonito não ter o que comer”. A convite de Oduvaldo Vianna começa
a trabalhar na Rádio Pan-Americana em São Paulo, mas ficou pouco tempo,
voltando para o Rio, atua na Rádio Nacional da qual fora diretor, sendo
responsável pela disseminação em massa das radionovelas. Participou ainda de
vários filmes de cinema.
No entanto, o stalinismo estava longe de se espraiar por
estes terrenos. Nos anos 50, como resultado programático do stalinismo em nível
mundial, o militante comunista devia adotar um abstencionismo de tipo
“monástico” em relação à vida social, como exemplo a ser seguido, um paradigma
essencialmente moralista pequeno-burguês. Na realidade, isto ocultava uma
mácula que o PCB sempre carregou, a sua adaptação aos regimes burgueses de
plantão, pois boemia era sinônimo de “marginalidade”. Foi assim durante a curta
fase de legalidade (1945 a 47) durante o governo Vargas, chegando ao ponto de
na sua II Conferência Nacional do PCB, em 1943, na qual Prestes fora eleito
Secretário-Geral, o Partido Comunista aprovar a tese da “União Nacional”, que
consistia em total apoio ao governo de Vargas, razão pela qual os stalinistas
voltaram as suas forças para as eleições parlamentares, elegendo 14 deputados
federais e um senador, Luiz Carlos Prestes. Anos depois apoiaram de mala e cuia
a chapa Juscelino-Jango nas eleições de 1955 e, ulteriormente, à campanha
presidencial de Henrique Batista Duffles Teixeira Lott (o Marechal Lott) e para
Vice-Presidente, João Goulart em 1960.
Contudo, foi no período do governo João Goulart, com o claro
esgotamento do nacional desenvolvimentismo e, paradoxalmente, no pós-golpe
militar de 1964 que o PCB mais se adaptou ao regime político. Isto se deve à
velha política stalinista do PCB, que tem como móvel programático a negação da
necessidade da revolução proletária e a busca interminável de uma aliança com
um setor “progressista” da burguesia nacional (a linha etapista da revolução
nacional e democrática, de caráter anti-imperialista e antifeudal, aprovada
desde seu III Congresso (29/12/1928 a 4/01/1929), o colocou sempre a reboque de
alguma fração da burguesia nacional, à espera de que esta pusesse em prática o
seu programa nacionalista. Esta “esperança” concentrava-se em João Goulart, o
que fez com que o partido após o golpe de 64 adentrasse em profunda crise,
estilhaçando-se em várias outras organizações que decidiram pela luta armada
contra a ditadura militar (VPR, ALN, PCBR, Colina, PCdoB, VAR-Palmares, MR-8
etc.).
“COMPANHEIROS DE VIAGEM” COOPTADOS PELA REDE GLOBO: “O
MELHOR PATRÃO DO MUNDO”
O processo de industrialização via penetração do capital
estrangeiro deveria avançar, para o quê a ditadura militar cumprira papel
fundamental, qual seja, a de garantir a acumulação capitalista para a burguesia
e os grandes grupos estrangeiros que ora invadiam o país. Por isto, os
opositores deveriam ser eliminados, os responsáveis pela disseminação da
opinião pública progressista se não mortos, exilados, ou então cooptados pelo
regime que se erguia sob os cadáveres dos heróicos militantes de esquerda. Eis
que neste período Mario Lago começa a tomar gosto pela televisão (desde meados
de 1954 participa do programa “Câmera Um” na Tv Rio). Nos primeiros dias de
abril de 1964 é preso em sua casa, ficando encarcerado por quase dois meses por
ter dirigido a greve dos radialistas cariocas, acaba sendo demitido da Rádio
Nacional, período por que passa sérias dificuldades financeiras.
Em 1966, com o aporte da ditadura militar para favorecer o
crescimento da Rede Globo, o “comunista” Mario Lago ganha seu primeiro papel
nesta emissora. Fora ainda preso algumas vezes após a decretação do AI-5. Neste
período atuou no filme de Glauber Rocha “Terra em Transe” (1967). Nos anos 70,
a Globo passa a investir massiva e “industrialmente” nas telenovelas às quais
Mario Lago já se encontra totalmente integrado, a tal ponto que declara sem
nenhuma vergonha de quem realmente se vendeu: “Estou diante de uma realidade.
Não adianta bancar D. Quixote e ficar procurando o moinho de vento. É preciso
compreender que televisão é um instrumento de poder nas mãos da classe
dominante. E a classe dominante tem seus princípios, seus paradigmas. Disso,
ela não se afasta. O Roberto Marinho, para mim, é o melhor patrão do mundo”
(Mário Lago – Década a década, Isa Cambará, 2011). Segue-lhe o exemplo, toda
uma camada de intelectuais ligados ao PCB como Jorge Amado e Dias Gomes, este
contratado não por coincidência, pelo mafioso Boni para escrever telenovelas,
gênero que ajudou a difundir e popularizar na TV brasileira. Todos cooptados
pelo regime, assimilados e neutralizados pela Rede Globo, nada mais faziam do
que cumprir a resolução contrarrevolucionária do PCB de não enfrentar
frontalmente o regime militar, isolando a estratégia política e militar das
organizações que optaram pela guerrilha urbana.
A política stalinista não impunha a necessidade de conspirar
contra o Estado burguês, devido à crença na via de desenvolvimento pacífico
para o socialismo. Portanto, o PCB na década de 70, tem como base programática
a via da “Constituição com João”, isto é, a via da negociação com os militares
genocidas. Tal política levou a uma profunda desmoralização do PCB diante da
vanguarda que enfrentava a ditadura com elementos mais classistas e
radicalizados. Desta dissensão do movimento operário iria surgir o Partido dos
Trabalhadores como uma concessão do regime militar vigente. Neste contexto,
Mario Lago fazia parte da cepa de “intelectuais comunistas” que se integraram à
abertura planejada, lenta e gradual, idealizada pelo general Golbery do Couto e
Silva. Às vésperas de sua morte, o amigo e parceiro de boemia de Ataulfo Alves,
rendeu-se “aos poderosos”, como gostava de se reportar acerca da burguesia
quando jovem. Tornou-se muito mais conhecido do “grande público” por atuar em
novelas do que por suas qualidades literárias ou autor teatral/musical. Desde a
“Nova República” de Sarney, dava efusivas declarações defendendo a democracia
dos ricos como valor universal. Participou de novelas que fizeram muito
sucesso: Selva de Pedra”, “O Casarão”, “Nina”, “Brilhante”, “Elas por Elas”,
“Barriga de Aluguel”, “Dancing Days”, “Pecado Capital” e a última foi “O
Clone”.
A ARTE COMO PARTICIPAÇÃO CONSCIENTE E ATIVA NA PREPARAÇÃO DA
REVOLUÇÃO PROLETÁRIA
“A revolução comunista não teme a arte” já nos ensinava o
velho bolchevique Leon Trotsky no “Manifesto por uma arte independente”. A
verdadeira arte é aquela que se esforça para expressar as necessidades
interiores do homem e da humanidade. Por isso ela “tem que ser revolucionária,
tem que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade”. Mas para
que este ensinamento vingue é necessário que o artista compreenda que seu lugar
situa-se num patamar além, apaixonadamente cimentado à causa do Homem e à sua
inabalável fidelidade aos princípios da revolução proletária. O combate de
Trotsky por uma arte revolucionária foi contra os moralistas pequenos burgueses
do stalinismo que reproduziam nada mais do que a velha cultura oligarca da
burguesia monopolista.
Evidentemente que dentro desta perspectiva revolucionária,
Mario Lago não se enquadrava, pois desempenhara um papel bastante limitado
estando preso às orientações programáticas contrarrevolucionárias do “Partidão”
e refém dos governos burgueses. O stalinismo defendia, ao mesmo tempo,
paradigmas moralistas segundo os quais os militantes comunistas deveriam seguir
um abstencionismo de tipo “monástico” como atitude de vida, cujos efeitos são
sentidos até hoje na militância de esquerda no país. Este é o resultado do não
enfrentamento direto com o regime político vigente, quer seja sob a forma de
ditadura, quer sob a “democracia” dos ricos ou, sobretudo, à vergonhosa
capitulação à Rede Globo por parte de seus militantes intelectuais.
Em oposição ao paradigma “monástico” imposto pelo stalinismo
desde a década de 50, como genuínos marxistas, reivindicamos a trajetória
“boêmia” de Mario Lago, como fonte inspiradora de vida de uma época em que
pulsavam os novos elementos de nossa cultura que, sobre o esplendoroso “chão da
Lapa”, ao lado de incontáveis artistas e intelectuais, se batia contra o
arcaísmo oligarca. No dia 20 de maio de 2002, finalmente Mario Lago teve seu
encontro com o tempo! Ambos “romperam” o acordo que durou 91 anos.
Hoje em dia, nesta época de barbárie cultural imposta pelo
imperialismo sobre todos os povos do planeta, somente a revolução socialista
através da violência revolucionária poderá erigir um novo modo de produção de
uma economia centralizada. Porém, a genuína arte nascida das cinzas da velha
sociedade, “para a criação intelectual ela deve, já desde o começo, estabelecer
e assegurar um regime anarquista de liberdade individual... a independência da
arte – para a revolução; a revolução – para a liberação definitiva da arte”
(“Manifesto por uma arte independente”).