HÁ TRÊS ANOS PARTIA UM “RAPAZ
LATINO-AMERICANO”: NOSSO TRIBUTO AO POETA BELCHIOR, COM SUAS MÚSICAS NOS ENSINOU... “VIVER É MELHOR QUE SONHAR!”
“Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro”
(Música: Sujeito de Sorte)
Há três anos, em um 30 de abril como hoje, morria na
cidade de Santa Cruz do Sul (RS), Antônio Carlos Belchior, o mais proeminente
compositor/cantor do grupo de artistas e intelectuais da década de 1970
conhecido como pessoal do Ceará. Sua partida ocorreu em meio à verdadeira
“caçada” midiática sofrida em função de sua opção ao se afastar voluntariamente
do mercado espetáculo do lixo cultural atualmente vigente em nosso país, e em
particular no estado do Ceará com a invasão das bandas de um pseudo “forró”
chamado de eletrônico. Belchior foi um dos primeiros cantores nordestinos a
fazer sucesso em todo o Brasil em meados dos anos 70, quando participava de um
grupo de jovens compositores e músicos cearenses, ao lado de Fagner, Ednardo,
Fausto Nilo, Rodger Rogério, Teti, Cirino e outros, conhecidos nacionalmente
como o “Pessoal do Ceará” que, fruto desta parceria, compuseram o disco
“Massafeira” em 1980. Nesta época consolidou-se não apenas como um cantor, mas
cresceu sobre uma proposta (contra)cultural de crítica ao modo de vida imposto
pelo regime militar pós-golpe de 1964, lançando canções ácidas e engajadas ao
mesmo tempo sensuais do quilate de “Velha roupa colorida”, “Como nossos pais”
(que sensibilizaram inclusive Elis Regina!), “Apenas um rapaz
latino-americano”, “Divina comédia humana”, “Sujeito de Sorte” e a genialíssima crônica da vida
“Pequeno perfil de um cidadão comum”. Por isto mesmo o establishment burguês
tratou de colocar, em tempos de reação ideológica, na marginalidade este
menestrel de tão lírica e coerente obra que partiu há dois anos deixando muita
saudade, que “matamos” ouvindo como prazer seus deliciosos versos e músicas,
cheios de poesia e resistência cultural.
Nascido no município de Sobral, Belchior é filho de uma
típica família das cidades do interior nordestino no século passado, pai
comerciante (bodegueiro) e mãe dona de casa, tendo 22 irmãos somados os
rebentos dos dois casamentos de seu progenitor. Depois de viver a infância em
sua cidade natal, o adolescente Antônio Carlos e sua família se mudam para
Fortaleza. Muito inteligente e com desempenho escolar muito acima da média, foi
matriculado no mais importante e tradicional colégio público do Estado na
época, o Liceu do Ceará, onde teve contato e estabeleceu amizade com jovens que
se tornaram figuras icônicas da cultura e da intelectualidade local como Fausto
Nilo e Cláudio Pereira, entre outros. Marcado pela tradição religiosa da
família, somado uma perspectiva ascensão (prestígio) social por um lado e uma
certa ânsia por mudanças bruscas na vida por outro, levou Belchior a abandonar
o científico (ensino médio atual) no Colégio Liceu e a ingressar na ordem dos
capuchinhos. Inicia aos dezoito anos em 1964, em plena ditadura, os estudos
como noviço capuchinho no mosteiro localizado na cidade serrana de
Guaramiranga. O frei Francisco Antônio de Sobral, como era chamado na ordem
Belchior, e sua turma de noviços chegou inclusive a receber a visita do
primeiro presidente da república no regime militar, o cearense general Castelo
Branco.
Com a verve da escrita que sempre o acompanhou e a
necessidade de mudança, Belchior abandonou os capuchinhos em 1966, deixando com
o amigo frei Hermínio uma pasta com vários textos produzidos naquele período.
Sua inclinação para a literatura e a arte era vigorosa, chegando a falar para o
mesmo frei seu projeto de traduzir, em linguagem popular, a Divina Comédia de
Dante Alighieri. Como se sabe não chegou a concretizá-lo de forma direta, mas
certamente ao se inspirar e ao colocar o título em uma de suas principais
canções de “a Divina Comédia humana” deu de alguma uma pequena contribuição
para popularizar no país esse clássico da literatura mundial. Ainda no mesmo
ano passa em primeiro lugar no vestibular para Medicina da Universidade Federal
do Ceará.
Influenciado pelo movimento de contracultura, o maio francês
1968 e a ideia de que a mudança está nas mãos da juventude, Belchior adota um
estilo alternativo (hippie), passa a viver a boemia e o ambiente universitário
com um violão na mão. Passou ainda enquanto aluno de medicina, entre 1969 e os
primeiros meses de 1970 a dar aulas como professor de Biologia, um colégio
Jesuíta da cidade chamado Santo Inácio, onde conheceu o amigo e parceiro cantor
e compositor Rodger Rogério. A partir daí mergulha de vez na boêmia e no meio
cultural da cidade, passando a frequentar o bar do Anísio local de encontro dos
artistas e da intelectualidade. Situado na beira mar ao lado da praia do
Mucuripe, o bar do Anísio se tornaria o maior celeiro artístico da nova música
cearense e de toda uma cena cultural, sendo frequentado por nomes com Fausto
Nilo, Raimundo Fagner, Rodger, Teti, Ednardo, Jorge Melo, Petrúcio Maio, Cirino
e muitos outros. Esse espaço foi fonte de inspiração e testemunha da criação de
verdadeiras obras primas como as canções Beira Mar de Ednardo, e sobretudo,
Mucuripe de Belchior e Fagner. Por sinal essa foi a primeira e principal
“parceria” entre os dois no início da carreira no Rio de Janeiro, dividindo o
mesmo apartamento, mas logo se tornaram verdadeiros inimigos com sérias
acusações entre ambos.
Depois da passagem pelo RJ sem grande avanço na carreira,
Belchior parte para São Paulo, onde finalmente grava seu primeiro Álbum com o
título de Mote e glosa, também conhecido como Apalo seco. Mas o sucesso só se
inicia de fato a partir da gravação por Elis Regina das composições “Velha
roupa colorida” e “Como nossos pais” e ganha o auge e o status de grande
estrela da música popular brasileira com os Álbuns Alucinação (1976), Coração
selvagem (1977), Todos os sentidos (1978) e Era uma vez um homem e seu
temo/Medo de avião (1979).
Exímio letrista, Belchior deu vazão, em sua extraordinária
obra, as questões da realidade social, em particular, a grande diferença de
desenvolvimento econômico e cultural entre as regiões do país e todas as suas
consequências. A condição de retirante é uma tônica em sua poética, “pois o que
pesa no norte, pela lei da gravidade. Disso Newton já sabia! Cai no sul, grande
cidade...”. Uma mensagem metafórica sobre a desesperada fuga da gravidade das
condições de existência da população miserável do nordeste, sobretudo, do
secular atraso das cidades do interior, ainda submetidas a um agrarismo
medieval, “os pés cansados e feridos de andar légua tirana”.
Outro tema recorrente em sua obra é o pensamento filosófico,
com os dilemas relacionados à própria existência, com a liberdade, a opressão,
o medo, a morte, a sensibilidade, os conflitos geracionais, o por vir e etc. O
discurso libertário nas suas canções, “saia do meu caminho eu prefiro andar
sozinho deixem que eu decida a minha vida, não preciso que me digam de que lado
nasce o sol...” e consequente a crítica a toda forma repressão, em plena
ditadura militar, fez com que Belchior fosse muitas vezes censurado. Por outro
seu viés anarquista, antipartidário que o acompanhou desde a época da
universidade, sem uma vinculação ou aproximação com nenhuma das organizações
políticas de esquerda que combatiam a ditadura, o garantiu uma espécie de certo
salvo conduta, não sofrendo nenhuma ameaça direta de exílio ou prisão. Aliás
essa foi uma marca característica de toda a leva do Pessoal do Ceará, diferente
de vários artísticas de outros estados que foram brutalmente reprimidos, sendo
detidos, presos, torturados e exilados.
No bojo de tudo isso entra também um forte ranço que
Belchior e o Pessoal do Ceará, que entre si era bastante conflitante, reservado
em relação aos artistas do sudeste, sobretudo RJ/SP, um atitude reativa diante
das diferenças e desigualdades regionais que resultava numa postura de negação
de um aproximação cultural e política. Até mesmo os artistas do nordeste como
os da Bahia e o movimento tropicalista, que não tinham esse pé atrás, pelo
contrário buscavam uma com aproximação em vários terrenos com que fazia parte
da cena cultural de região sudeste, era criticado. Além de tecer críticas a
Gilberto Gil, Belchior tinha como alvo predileto outro baiano, Caetano Veloso,
com estabeleceu um intenso “diálogo artístico” se contrapondo ao que chamava de
poesia pura ou a hedonismo presente em sua obra, “um antigo compositor baiano
me dizia tudo é divino, tudo é maravilhoso” e “mas eu sei que tudo é permitido”
citações em referência às canções de Caetano “Divino maravilhoso” e “É proibido
proibir”. Incrivelmente o único do Pessoal do Ceará a romper esse o cerco
rançoso foi Raimundo Fagner que estabeleceu no início da década de 1980 uma
aproximação cultural, política e uma parceria artística com Chico Buarque…
Desgraçadamente, hoje Fagner se tornou uma figura patética e reacionária, um
entusiasta do justiceiro Moro e apoiador do fascista Bolsonaro.
Como o processo de retrocesso cultural imposto pela grande,
despejando o lixo musical para consumo em larga escala, Belchior com sua arte popular
refinado caiu no ostracismo e em meados dos anos década passados tomou uma
atitude inusitada, resolveu sumir com sua atual mulher, entrando numa espécie
de autoexílio, sem deixar rastro e contrato com as pessoas mais próximas como
os próprios filhos. Terminou seus últimos dias morando de favor em casa cedida
por amigo radialista na cidade do interior gaúcho. Essa passagem final da vida
de Belchior ainda está envolto de mistério, sobretudo, a respeito dos reais
motivos que o levaram a essa decisão. Certamente não há um fator isolados, mas
a conjunção de vários como a sua resposta a um período de tão difícil e tanta
insensibilidade que para um artista do quilate fosse insuportável vivenciar
passivamente, repetindo de certa forma como destacou o autor do livro “Apenas
um rapaz Latino-americano” Jotabê Medeiros, a experiência de Rimbaud do
renomado poeta simbolista francês, um dos preferidos de Belchior, que abandonou
a glamour, o status e o conforto de morar na França e se enfiou no Norte da
África e levar uma vida pacata para comerciante de armas e café. Coincidência
ou não Rimbaud em seu poema “Canção da torre mais alta” diz “por delicadeza
perdi minha vida”, Belchior por sua cita essa passagem na canção “Os
profissionais” acrescentando a palavra também, “por delicadeza também perdi
minha vida”. Outro fator, possivelmente o mais forte, a ter levado a esse
desfecho, foi a personagem Edna Prometheu, sua última com quem embarcou ele
embarcou em sua última aventura. As pessoas que tiveram contato com Belchior
nesse período relatam que Edna exercia um forte domínio sobre ele, a ponta de
perceberem nele dois comportamentos distintos, um mais ativo e animado cheio de
planos, sem a presença dela, e outro passivo, contido e ensimesmado perante a
mesma. Dessa forma realizou uma ação devastadora de um verdadeiro controle da
alma, minando o potencial de vida, levando-o processo destrutivo que culminou
com sua morte. Contudo o poder de sua genial obra, o alcance de seus versos
instigantes e certeiros tornaram esse Rapaz Latino-americano imortal na mente
de muitas gerações.
Belchior está presente, sendo exemplo de resistência ativa
cultural. No final da vida presenciou o profundo retrocesso ideológico e
cultural da humanidade, cada vez mais dominada pela idiotização da internet (as
famigeradas e controladas redes sociais), pelos meios de comunicação de massa e
a opinião pública a serviço da contrarrevolução imperialista nos países
semicoloniais como o Brasil. Assim, qualquer elemento de resistência cultural,
mesmo que não esteja em voga na mídia, deve ser destruído, por ser considerado
“velho” e contestador da estupidificação das mentes da juventude, cujas letras
e poesia da obra de Belchior tratam da inconformidade e de um claro
engajamento musical voltado a um projeto estético-político contracultural
rechaçado pela ideologia dominante. A ruptura com a “inquestionalidade” e com a
cultura do óbvio não mais interessa à classe dominante, o que importa acima de
tudo é ser “moderno e atualizado”, em conformidade ao que impõe goela abaixo a
indústria cultural de massas voltada exclusivamente para o mercado de consumo
do “novo” e do politicamente correto, o que implica inexistência de espaço para
a crítica mais ácida aos costumes e idiossincrasias. Desta forma, os detentores
da propriedade privada dos meios de comunicação em associação com o
imperialismo tratam de destruir os últimos resquícios de resistência cultural
ainda existentes para impor os “novos” valores ideológicos extremamente
conservadores e belicosos a fim de eliminar o “velho” da sociedade e o que
resta da boa música brasileira para logo impor padrões de consumo descartáveis
e de baixa qualidade artística. O grande depositário da cultura de resistência
político-cultural deve ser o proletariado, organizado desde seus locais de
moradia, estudo e trabalho de forma que possa enfrentar com sua ação direta os
ditames da burguesia, a política do “consenso” e o capital financeiro
internacional que é o grande beneficiário da idiotização principalmente da
juventude. Somente a classe operária dirigida por um partido comunista pode ter
em suas mãos o futuro e um horizonte cultural pleno de satisfação e júbilo
através da destruição revolucionária e violenta do atual modo de produção e,
sobre suas cinzas, erguer as bases de uma nova sociedade!