terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O VÍRUS MAIS LETAL NÃO É O CORONAVÍRUS: É A GUERRA! 

Por John Pilger *

O Memorial das Forças Armadas britânicas é um lugar silencioso, fantasmagórico. Localizado na beleza rural de Staffordshire, num arvoredo de umas 30 mil árvores e relvados envolventes, suas figura homéricas celebram determinação e sacrifício. Os nomes de mais de 16 mil soldados britânicos estão ali listados. A literatura diz que "morreram no teatro de operações ou foram alvos de terroristas". No dia em que estive ali, um pedreiro estava acrescentando novos nomes a aqueles que haviam morrido em cerca de 50 operações por todo o mundo durante o período que é conhecido como "tempo de paz". Malásia, Irlanda, Quénia, Hong Kong, Líbia, Iraque, Palestina e muitos mais, incluindo operações secretas tais como as da Indochina. O jornalista investigativo Phil Miller revelou recentemente em “Declassified” que a Grã-Bretanha de Boris Johnson mantinha 145 sítios militares (chame-os de bases, em 42 países). Johnson jactou-se de que a Grã-Bretanha é "o principal poder naval na Europa".

Em meio à maior emergência sanitária dos tempos modernos, com mais de 4 milhões de procedimentos cirúrgicos adiados pelo Serviço Nacional de Saúde, (NHS), Johnson anunciou um aumento recorde de €18,1 bilhões de Libras nos assim chamados gastos de defesa, um número que recuperaria muitas vezes o sub-financiado NHS. Mas estes de bilhões de Libras não são para defesa do país, a Grã-Bretanha não tem “inimigos” além dos próprios governantes “internos” que traem a confiança das suas pessoas comuns, seus enfermeiros e médicos, seus cuidadores, idosos, sem abrigo e jovens, como têm feito sucessivos governos neoliberais, Conservadores ou Trabalhistas. Ao explorar a serenidade do Memorial Nacional da Guerra logo percebi que ali não havia um único monumento, ou placa, ou rosal honrando a memória das vítimas da Grã-Bretanha – os civis nas operações em "tempo de paz" comemoradas aqui. 

Não há lembrança dos líbios mortos quando o seu país foi deliberadamente destruído pelo Primeiro-Ministro David Cameron e seus colaboradores em Paris e Washington. Não há uma palavra de lamento pelas mulheres e crianças sérvias mortas pelas bombas britânicas, lançadas de uma altura segura sobre escolas, fábricas, pontes, cidades, sob as ordens de Tony Blair; ou pelas empobrecidas crianças iemenitas aniquiladas por pilotos sauditas com a sua logística e alvos fornecidos pelos britânicos na segurança do ar condicionado de Riad; ou pelos sírios esfaimados pelas "sanções". 

Não há qualquer monumento para as crianças palestinas assassinadas com a conivência permanente da elite britânica, tal como a recente campanha que destruiu um modesto movimento de reforma dentro do Partido Trabalhista com acusações especiosas de anti-semitismo. Duas semanas atrás, o chefe do estado-maior militar de Israel e o chefe da Defesa da Grã-Bretanha assinaram um acordo para "formalizar e reforçar" a cooperação militar. Isto não foi notícia. Mais armas britânicas e apoio logístico agora serão despejados no regime fora da lei de Tel Aviv, cujos atiradores de elite alvejam crianças e psicopatas interrogam crianças em isolamento extremo. Talvez a mais gritante omissão no memorial de guerra de Staffordshire seja um reconhecimento dos milhões de iraquianos cujas vidas e cujo país foram destruídos pela invasão ilegal de Blair e Bush em 2003.

Como se sustenta um silêncio tão letal numa sociedade refinada? A minha resposta é que a propaganda é muito mais eficaz em sociedades que se consideram livres do que em ditaduras e autocracias. Incluo a censura por omissão. As nossas indústrias de propaganda (tanto políticas como culturais, incluindo a maior parte dos meios de comunicação social) são as mais poderosas, omnipresentes e refinadas do mundo. Grandes mentiras podem ser repetidas incessantemente nas vozes “reconfortantes e críveis” da BBC. As omissões não são um problema.

Uma questão semelhante diz respeito à guerra nuclear, cuja ameaça é "sem interesse", para citar Harold Pinter. A Rússia, uma potência nuclear, é cercada pelo grupo belicista conhecido como OTAN com tropas britânicas a "manobrar" regularmente até à fronteira invadida por Hitler. A difamação de tudo o que é russo, não minimizando a verdade histórica de que o Exército Vermelho venceu amplamente a Segunda Guerra Mundial, está infiltrada na consciência pública. Os russos não têm "nenhum interesse", exceto como demônios.

A China, também uma potência nuclear, aguenta o fardo da provocação incessante, com bombardeiros e drones estratégicos ianques a sondar constantemente seu território. Cerca de 400 bases americanas circundam a China, "um pouco como um laço", disse-me um antigo estrategista do Pentágono. Estas estendem-se desde a Austrália, através do Pacífico até ao sul e norte da Ásia e através da Eurásia. Na Coreia do Sul, um sistema de mísseis conhecido como Terminal de Defesa Aérea de Alta Altitude (Terminal High Altitude Air Defense, THAAD), é apontado à queima-roupa para a China através do estreito Mar da China Oriental. Imagine mísseis chineses no México ou no Canadá ou ao largo da costa da Califórnia. Alguns anos após a invasão do Iraque fiz um filme chamado “The War You Don't See”, no qual perguntei a importantes jornalistas americanos e britânicos, bem como a executivos de noticiários televisivos – pessoas que conhecia como colegas, como Bush e Blair, foram autorizados a escapar ao grande crime no Iraque, considerando que as suas mentiras não eram muito brilhantes. 

As suas respostas surpreenderam-me. Tivéssemos "nós", disseram eles – isto é, jornalistas e emissoras, especialmente nos EUA, desafiando as afirmações da Casa Branca e da Downing Street, investigado e revelado as mentiras, ao invés de as amplificar, a invasão do Iraque em 2003 provavelmente não teria acontecido. Inúmeras pessoas estariam vivas hoje em dia. Quatro milhões de refugiados não teriam fugido. O pavoroso ISIS, um produto da invasão de Blair/Bush, poderia não ter sido concebido. O coronavírus tem proporcionado uma cobertura para encobrir esta pandemia de propaganda. Em Julho, Morrison tomou a sugestão de Trump e anunciou que a Austrália, que não tem inimigos, gastaria 270 bilhões de dólares australianos [€167 bilhões de Libras ] em provocações, incluindo mísseis que poderiam atingir a China. Alguns anos atrás entrevistei o antigo responsável da CIA na América Latina, Duane Claridge. Em algumas palavras agradavelmente honestas, ele resumiu a política externa "ocidental" tal como é ordenada e dirigida por Washington. Relatei uma série de guerras. Vi os restos de crianças, mulheres e idosos bombardeados e queimados até à morte: as suas aldeias devastadas, as suas árvores utilizadas como cabides com partes humanas. Talvez seja por isso que reservo um desprezo específico por aqueles que promovem o crime da guerra imperialista predadora, que a acenam com má fé e profanidades, nunca a tendo experimentado eles próprios. O seu monopólio deve ser rompido.

14/Dezembro/2020 

* John Pilger, laureado jornalista australiano, radicado no Reino Unido