sábado, 30 de abril de 2022

30 DE ABRIL MARCA A PERDA DE DOIS GRANDES ARTISTAS DA CULTURA BRASILEIRA: BETH CARVALHO E BELCHIOR PRESENTES! 


Beth Carvalho e Belchior tem muito em comum, além de terem nos deixado em um 30 de abril. Ambos são sinônimos da resistência cultural brasileira, cujas composições e músicas marcaram gerações por sua rebeldia e uma fina poética, que ligava as dores humanas com o sentimento do povo, samba e MPB expressaram vivamente essa simbiose mágica. São duas perdas para a cultura popular que estarão sempre presentes entre aqueles que não se vergam ante a destruição de nossa música pela força do “vil metal” que impera no mercado do “entretenimento”. 
Beth decidiu seguir a carreira artística após ganhar um violão da mãe. Aos oito anos, ouvia emocionada as canções de Sílvio Caldas, Elizeth Cardoso e Aracy de Almeida, grandes amigos de seu pai, que era advogado. Sua avó, Ressú, tocava bandolim e violão. Sua mãe tocava piano clássico. Sua irmã Vânia cantava e gravou discos de samba. Seguindo essa área, se tornou professora de música e passou a dar aulas em escolas locais. Morou em vários bairros do Rio e seu pai a levava com regularidade aos ensaios das escolas e rodas de samba, onde ela dançava em apresentações nas festas e reuniões musicais com seus amigos. Assim, nos anos 60, surgia a cantora Beth Carvalho, influenciada por tudo isso e pela bossa nova, gênero musical que passou a gostar depois de ouvir João Gilberto, passando a compor e a cantar. Em 1964, seu pai foi cassado pelo golpe militar. Para superar as dificuldades que sua família enfrentou durante a ditadura, Beth voltou a dar aulas de violão, dessa vez para quarenta alunos. Graças à formação política recebida de seus pais, foi uma artista engajada nos movimentos sociais, políticos e culturais brasileiros, recentemente esteve prestando solidariedade ao povo venezuelano atacado pelo imperialismo! Ela partiu, porém nos deixou as lições que devemos permanecer firmes na trincheira da resistência. Também em um 30 de abril, só que a dois anos atrás morria na cidade de Santa Cruz do Sul (RS), Antônio Carlos Belchior, o mais proeminente compositor/cantor do grupo de artistas e intelectuais da década de 1970 conhecido como pessoal do Ceará. Sua partida ocorreu em meio a verdadeira “caçada” midiática sofrida em função de sua opção ao se afastar voluntariamente do mercado espetáculo do lixo cultural atualmente vigente em nosso país, e em particular no estado do Ceará com a invasão das bandas de um pseudo “forró” chamado de eletrônico. Belchior foi um dos primeiros cantores nordestinos a fazer sucesso em todo o Brasil em meados dos anos 70, quando participava de um grupo de jovens compositores e músicos cearenses, ao lado de Fagner, Ednardo, Fausto Nilo, Rodger Rogério, Teti, Cirino e outros, conhecidos nacionalmente como o “Pessoal do Ceará” que, fruto desta parceria, compuseram o disco “Massafeira” em 1980. Nesta época consolidou-se não apenas como um cantor, mas cresceu sobre uma proposta (contra)cultural de crítica ao modo de vida imposto pelo regime militar pós-golpe de 1964, lançando canções ácidas e engajadas ao mesmo tempo sensuais do quilate de “Velha roupa colorida”, “Como nossos pais” (que sensibilizaram inclusive Elis Regina!), “Apenas um rapaz latino-americano”, “Divina comédia humana” e a genialíssima crônica da vida “Pequeno perfil de um cidadão comum”. Por isto mesmo o establishment burguês tratou de colocar, em tempos de reação ideológica, na marginalidade este menestrel de tão lírica e coerente obra que partiu há dois anos deixando muita saudade, que “matamos” ouvindo como prazer seus deliciosos versos e músicas, cheios de poesia e resistência cultural.

Nascido no município de Sobral, Belchior é filho de uma típica família das cidades do interior nordestino no século passado, pai comerciante (bodegueiro) e mãe dona de casa, tendo 22 irmãos somados os rebentos dos dois casamentos de seu progenitor. Depois de viver a infância em sua cidade natal, o adolescente Antônio Carlos e sua família se mudam para Fortaleza. Muito inteligente e com desempenho escolar muito acima da média, foi matriculado no mais importante e tradicional colégio público do Estado na época, o Liceu do Ceará, onde teve contato e estabeleceu amizade com jovens que se tornaram figuras icônicas da cultura e da intelectualidade local como Fausto Nilo e Cláudio Pereira, entre outros. Marcado pela tradição religiosa da família, somado uma perspectiva ascensão (prestígio) social por um lado e uma certa ânsia por mudanças bruscas na vida por outro, levou Belchior a abandonar o científico (ensino médio atual) no Colégio Liceu e a ingressar na ordem dos capuchinhos. Inicia aos dezoito anos em 1964, em plena ditadura, os estudos como noviço capuchinho no mosteiro localizado na cidade serrana de Guaramiranga. O frei Francisco Antônio de Sobral, como era chamado na ordem Belchior, e sua turma de noviços chegou inclusive a receber a visita do primeiro presidente da república no regime militar, o cearense general Castelo Branco.            

Com a verve da escrita que sempre o acompanhou e a necessidade de mudança, Belchior abandonou os capuchinhos em 1966, deixando com o amigo frei Hermínio uma pasta com vários textos produzidos naquele período. Sua inclinação para a literatura e a arte era vigorosa, chegando a falar para o mesmo frei seu projeto de traduzir, em linguagem popular, a Divina Comédia de Dante Alighieri. Como se sabe não chegou a concretizá-lo de forma direta, mas certamente ao se inspirar e ao colocar o título em uma de suas principais canções de “a Divina Comédia humana” deu de alguma uma pequena contribuição para popularizar no país esse clássico da literatura mundial. Ainda no mesmo ano passa em primeiro lugar no vestibular para Medicina da Universidade Federal do Ceará.

Influenciado pelo movimento de contracultura, o maio francês 1968 e a ideia de que a mudança está nas mãos da juventude, Belchior adota um estilo alternativo (hippie), passa a viver a boemia e o ambiente universitário com um violão na mão. Passou ainda enquanto aluno de medicina, entre 1969 e os primeiros meses de 1970 a dar aulas como professor de Biologia, um colégio Jesuíta da cidade chamado Santo Inácio, onde conheceu o amigo e parceiro cantor e compositor Rodger Rogério. A partir daí mergulha de vez na boêmia e no meio cultural da cidade, passando a frequentar o bar do Anísio local de encontro dos artistas e da intelectualidade. Situado na beira mar ao lado da praia do Mucuripe, o bar do Anísio se tornaria o maior celeiro artístico da nova música cearense e de toda uma cena cultural, sendo frequentado por nomes com Fausto Nilo, Raimundo Fagner, Rodger, Teti, Ednardo, Jorge Melo, Petrúcio Maio, Cirino e muitos outros. Esse espaço foi fonte de inspiração e testemunha da criação de verdadeiras obras primas como as canções Beira Mar de Ednardo, e sobretudo, Mucuripe de Belchior e Fagner. Por sinal essa foi a primeira e principal “parceria” entre os dois no início da carreira no Rio de Janeiro, dividindo o mesmo apartamento, mas logo se tornaram verdadeiros inimigos com sérias acusações entre ambos.

Depois da passagem pelo RJ sem grande avanço na carreira, Belchior parte para São Paulo, onde finalmente grava seu primeiro Álbum com o título de Mote e glosa, também conhecido como Apalo seco. Mas o sucesso só se inicia de fato a partir da gravação por Elis Regina das composições “Velha roupa colorida” e “Como nossos pais” e ganha o auge e o status de grande estrela da música popular brasileira com os Álbuns Alucinação (1976), Coração selvagem (1977), Todos os sentidos (1978) e Era uma vez um homem e seu temo/Medo de avião (1979).

Exímio letrista, Belchior deu vazão, em sua extraordinária obra, as questões da realidade social, em particular, a grande diferença de desenvolvimento econômico e cultural entre as regiões do país e todas as suas consequências. A condição de retirante é uma tônica em sua poética, “pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade. Disso Newton já sabia! Cai no sul, grande cidade...”. Uma mensagem metafórica sobre a desesperada fuga da gravidade das condições de existência da população miserável do nordeste, sobretudo, do secular atraso das cidades do interior, ainda submetidas a um agrarismo medieval, “os pés cansados e feridos de andar légua tirana”.

Outro tema recorrente em sua obra é o pensamento filosófico, com os dilemas relacionados à própria existência, com a liberdade, a opressão, o medo, a morte, a sensibilidade, os conflitos geracionais, o por vir e etc. O discurso libertário nas suas canções, “saia do meu caminho eu prefiro andar sozinho deixem que eu decida a minha vida, não preciso que me digam de que lado nasce o sol...” e consequente a crítica a toda forma repressão, em plena ditadura militar, fez com que Belchior fosse muitas vezes censurado. Por outro seu viés anarquista, antipartidário que o acompanhou desde a época da universidade, sem uma vinculação ou aproximação com nenhuma das organizações políticas de esquerda que combatiam a ditadura, o garantiu uma espécie de certo salvo conduta, não sofrendo nenhuma ameaça direta de exílio ou prisão. Aliás essa foi uma marca característica de toda a leva do Pessoal do Ceará, diferente de vários artísticas de outros estados que foram brutalmente reprimidos, sendo detidos, presos, torturados e exilados.

No bojo de tudo isso entra também um forte ranço que Belchior e o Pessoal do Ceará, que entre si era bastante conflitante, reservado em relação aos artistas do sudeste, sobretudo RJ/SP, um atitude reativa diante das diferenças e desigualdades regionais que resultava numa postura de negação de um aproximação cultural e política. Até mesmo os artistas do nordeste como os da Bahia e o movimento tropicalista, que não tinham esse pé atrás, pelo contrário buscavam uma com aproximação em vários terrenos com que fazia parte da cena cultural de região sudeste, era criticado. Além de tecer críticas a Gilberto Gil, Belchior tinha como alvo predileto outro baiano, Caetano Veloso, com estabeleceu um intenso “diálogo artístico” se contrapondo ao que chamava de poesia pura ou a hedonismo presente em sua obra, “um antigo compositor baiano me dizia tudo é divino, tudo é maravilhoso” e “mas eu sei que tudo é permitido” citações em referência às canções de Caetano “Divino maravilhoso” e “É proibido proibir”. Incrivelmente o único do Pessoal do Ceará a romper esse o cerco rançoso foi Raimundo Fagner que estabeleceu no início da década de 1980 uma aproximação cultural, política e uma parceria artística com Chico Buarque… Desgraçadamente, hoje Fagner se tornou uma figura patética e reacionária, um entusiasta do justiceiro Moro e apoiador do fascista Bolsonaro. 

Como o processo de retrocesso cultural imposto pela grande, despejando o lixo musical para consumo em larga escala, Belchior com sua arte popular refinado caiu no ostracismo e em meados dos anos década passados tomou uma atitude inusitada, resolveu sumir com sua atual mulher, entrando numa espécie de autoexílio, sem deixar rastro e contrato com as pessoas mais próximas como os próprios filhos. Terminou seus últimos dias morando de favor em casa cedida por amigo radialista na cidade do interior gaúcho. Essa passagem final da vida de Belchior ainda está envolto de mistério, sobretudo, a respeito dos reais motivos que o levaram a essa decisão. Certamente não há um fator isolados, mas a conjunção de vários como a sua resposta a um período de tão difícil e tanta insensibilidade que para um artista do quilate fosse insuportável vivenciar passivamente, repetindo de certa forma como destacou o autor do livro “Apenas um rapaz Latino-americano” Jotabê Medeiros, a experiência de Rimbaud do renomado poeta simbolista francês, um dos preferidos de Belchior, que abandonou a glamour, o status e o conforto de morar na França e se enfiou no Norte da África e levar uma vida pacata para comerciante de armas e café. Coincidência ou não Rimbaud em seu poema “Canção da torre mais alta” diz “por delicadeza perdi minha vida”, Belchior por sua cita essa passagem na canção “Os profissionais” acrescentando a palavra também, “por delicadeza também perdi minha vida”. Outro fator, possivelmente o mais forte, a ter levado a esse desfecho, foi a personagem Edna Prometheu, sua última com quem embarcou ele embarcou em sua última aventura. As pessoas que tiveram contato com Belchior nesse período relatam que Edna exercia um forte domínio sobre ele, a ponta de perceberem nele dois comportamentos distintos, um mais ativo e animado cheio de planos, sem a presença dela, e outro passivo, contido e ensimesmado perante a mesma. Dessa forma realizou uma ação devastadora de um verdadeiro controle da alma, minando o potencial de vida, levando-o processo destrutivo que culminou com sua morte. Contudo o poder de sua genial obra, o alcance de seus versos instigantes e certeiros tornaram esse Rapaz Latino-americano imortal na mente de muitas gerações.

Acabamos de perder Beth Carvalho e passados dois anos da morte de Belchior reafirmamos que ambos estão presentes e são exemplos de resistência ativa cultural. Os dois no final da vida presenciaram o profundo retrocesso ideológico e cultural da humanidade, cada vez mais dominada pela idiotização da internet (as famigeradas e controladas redes sociais), pelos meios de comunicação de massa e a opinião pública a serviço da contrarrevolução imperialista nos países semicoloniais como o Brasil. Assim, qualquer elemento de resistência cultural, mesmo que não esteja em voga na mídia, deve ser destruído, por ser considerado “velho” e contestador da estupidificação das mentes da juventude, cujas letras e poesia da obra de Belchior e Beth tratam da inconformidade e de um claro engajamento musical voltado a um projeto estético-político contracultural rechaçado pela ideologia dominante. A ruptura com a “inquestionalidade” e com a cultura do óbvio não mais interessa à classe dominante, o que importa acima de tudo é ser “moderno e atualizado”, em conformidade ao que impõe goela abaixo a indústria cultural de massas voltada exclusivamente para o mercado de consumo do “novo” e do politicamente correto, o que implica inexistência de espaço para a crítica mais ácida aos costumes e idiossincrasias. Muitos artistas consagrados, exponenciais como Chico Buarque, já se renderam covarde e mediocremente a esta situação, declinando conscientemente em se constituir em um polo revolucionário que faça germinar qualquer semente de resistência cultural no país, vergando-se às imposições da “voz do dono”. Desta forma, os detentores da propriedade privada dos meios de comunicação em associação com o imperialismo tratam de destruir os últimos resquícios de resistência cultural ainda existentes para impor os “novos” valores ideológicos extremamente conservadores e belicosos a fim de eliminar o “velho” da sociedade e o que resta da boa música brasileira para logo impor padrões de consumo descartáveis e de baixa qualidade artística. O grande depositário da cultura de resistência político-cultural deve ser o proletariado, organizado desde seus locais de moradia, estudo e trabalho de forma que possa enfrentar com sua ação direta os ditames da burguesia, a política do “consenso” e o capital financeiro internacional que é o grande beneficiário da idiotização principalmente da juventude. Somente a classe operária dirigida por um partido comunista pode ter em suas mãos o futuro e um horizonte cultural pleno de satisfação e júbilo através da destruição revolucionária e violenta do atual modo de produção e, sobre suas cinzas, erguer as bases de uma nova sociedade!