30 DE ABRIL MARCA A PERDA DE DOIS GRANDES ARTISTAS DA
CULTURA BRASILEIRA: BETH CARVALHO E BELCHIOR PRESENTES!
Beth Carvalho e Belchior tem muito em comum, além de terem
nos deixado em um 30 de abril. Ambos são sinônimos da resistência cultural
brasileira, cujas composições e músicas marcaram gerações por sua rebeldia e
uma fina poética, que ligava as dores humanas com o sentimento do povo, samba e
MPB expressaram vivamente essa simbiose mágica. São duas perdas para a cultura
popular que estarão sempre presentes entre aqueles que não se vergam ante a
destruição de nossa música pela força do “vil metal” que impera no mercado do “entretenimento”.
Beth decidiu seguir a carreira artística após ganhar um violão da mãe. Aos oito
anos, ouvia emocionada as canções de Sílvio Caldas, Elizeth Cardoso e Aracy de
Almeida, grandes amigos de seu pai, que era advogado. Sua avó, Ressú, tocava
bandolim e violão. Sua mãe tocava piano clássico. Sua irmã Vânia cantava e
gravou discos de samba. Seguindo essa área, se tornou professora de música e
passou a dar aulas em escolas locais. Morou em vários bairros do Rio e seu pai
a levava com regularidade aos ensaios das escolas e rodas de samba, onde ela
dançava em apresentações nas festas e reuniões musicais com seus amigos. Assim,
nos anos 60, surgia a cantora Beth Carvalho, influenciada por tudo isso e pela
bossa nova, gênero musical que passou a gostar depois de ouvir João Gilberto,
passando a compor e a cantar. Em 1964, seu pai foi cassado pelo golpe militar.
Para superar as dificuldades que sua família enfrentou durante a ditadura, Beth
voltou a dar aulas de violão, dessa vez para quarenta alunos. Graças à formação
política recebida de seus pais, foi uma artista engajada nos movimentos
sociais, políticos e culturais brasileiros, recentemente esteve prestando
solidariedade ao povo venezuelano atacado pelo imperialismo! Ela partiu, porém
nos deixou as lições que devemos permanecer firmes na trincheira da
resistência. Também em um 30 de abril, só que a dois anos atrás morria na
cidade de Santa Cruz do Sul (RS), Antônio Carlos Belchior, o mais proeminente
compositor/cantor do grupo de artistas e intelectuais da década de 1970
conhecido como pessoal do Ceará. Sua partida ocorreu em meio a verdadeira
“caçada” midiática sofrida em função de sua opção ao se afastar voluntariamente
do mercado espetáculo do lixo cultural atualmente vigente em nosso país, e em
particular no estado do Ceará com a invasão das bandas de um pseudo “forró”
chamado de eletrônico. Belchior foi um dos primeiros cantores nordestinos a
fazer sucesso em todo o Brasil em meados dos anos 70, quando participava de um
grupo de jovens compositores e músicos cearenses, ao lado de Fagner, Ednardo,
Fausto Nilo, Rodger Rogério, Teti, Cirino e outros, conhecidos nacionalmente
como o “Pessoal do Ceará” que, fruto desta parceria, compuseram o disco
“Massafeira” em 1980. Nesta época consolidou-se não apenas como um cantor, mas
cresceu sobre uma proposta (contra)cultural de crítica ao modo de vida imposto
pelo regime militar pós-golpe de 1964, lançando canções ácidas e engajadas ao
mesmo tempo sensuais do quilate de “Velha roupa colorida”, “Como nossos pais”
(que sensibilizaram inclusive Elis Regina!), “Apenas um rapaz
latino-americano”, “Divina comédia humana” e a genialíssima crônica da vida
“Pequeno perfil de um cidadão comum”. Por isto mesmo o establishment burguês
tratou de colocar, em tempos de reação ideológica, na marginalidade este
menestrel de tão lírica e coerente obra que partiu há dois anos deixando muita
saudade, que “matamos” ouvindo como prazer seus deliciosos versos e músicas,
cheios de poesia e resistência cultural.
Nascido no município de Sobral, Belchior é filho de uma típica
família das cidades do interior nordestino no século passado, pai comerciante
(bodegueiro) e mãe dona de casa, tendo 22 irmãos somados os rebentos dos dois
casamentos de seu progenitor. Depois de viver a infância em sua cidade natal, o
adolescente Antônio Carlos e sua família se mudam para Fortaleza. Muito
inteligente e com desempenho escolar muito acima da média, foi matriculado no
mais importante e tradicional colégio público do Estado na época, o Liceu do
Ceará, onde teve contato e estabeleceu amizade com jovens que se tornaram
figuras icônicas da cultura e da intelectualidade local como Fausto Nilo e
Cláudio Pereira, entre outros. Marcado pela tradição religiosa da família,
somado uma perspectiva ascensão (prestígio) social por um lado e uma certa ânsia
por mudanças bruscas na vida por outro, levou Belchior a abandonar o científico
(ensino médio atual) no Colégio Liceu e a ingressar na ordem dos capuchinhos.
Inicia aos dezoito anos em 1964, em plena ditadura, os estudos como noviço
capuchinho no mosteiro localizado na cidade serrana de Guaramiranga. O frei
Francisco Antônio de Sobral, como era chamado na ordem Belchior, e sua turma de
noviços chegou inclusive a receber a visita do primeiro presidente da república
no regime militar, o cearense general Castelo Branco.
Com a verve da escrita que sempre o acompanhou e a
necessidade de mudança, Belchior abandonou os capuchinhos em 1966, deixando com
o amigo frei Hermínio uma pasta com vários textos produzidos naquele período.
Sua inclinação para a literatura e a arte era vigorosa, chegando a falar para o
mesmo frei seu projeto de traduzir, em linguagem popular, a Divina Comédia de
Dante Alighieri. Como se sabe não chegou a concretizá-lo de forma direta, mas
certamente ao se inspirar e ao colocar o título em uma de suas principais
canções de “a Divina Comédia humana” deu de alguma uma pequena contribuição
para popularizar no país esse clássico da literatura mundial. Ainda no mesmo
ano passa em primeiro lugar no vestibular para Medicina da Universidade Federal
do Ceará.
Influenciado pelo movimento de contracultura, o maio francês
1968 e a ideia de que a mudança está nas mãos da juventude, Belchior adota um
estilo alternativo (hippie), passa a viver a boemia e o ambiente universitário
com um violão na mão. Passou ainda enquanto aluno de medicina, entre 1969 e os
primeiros meses de 1970 a dar aulas como professor de Biologia, um colégio
Jesuíta da cidade chamado Santo Inácio, onde conheceu o amigo e parceiro cantor
e compositor Rodger Rogério. A partir daí mergulha de vez na boêmia e no meio
cultural da cidade, passando a frequentar o bar do Anísio local de encontro dos
artistas e da intelectualidade. Situado na beira mar ao lado da praia do
Mucuripe, o bar do Anísio se tornaria o maior celeiro artístico da nova música
cearense e de toda uma cena cultural, sendo frequentado por nomes com Fausto
Nilo, Raimundo Fagner, Rodger, Teti, Ednardo, Jorge Melo, Petrúcio Maio, Cirino
e muitos outros. Esse espaço foi fonte de inspiração e testemunha da criação de
verdadeiras obras primas como as canções Beira Mar de Ednardo, e sobretudo,
Mucuripe de Belchior e Fagner. Por sinal essa foi a primeira e principal
“parceria” entre os dois no início da carreira no Rio de Janeiro, dividindo o
mesmo apartamento, mas logo se tornaram verdadeiros inimigos com sérias
acusações entre ambos.
Depois da passagem pelo RJ sem grande avanço na carreira,
Belchior parte para São Paulo, onde finalmente grava seu primeiro Álbum com o
título de Mote e glosa, também conhecido como Apalo seco. Mas o sucesso só se
inicia de fato a partir da gravação por Elis Regina das composições “Velha
roupa colorida” e “Como nossos pais” e ganha o auge e o status de grande
estrela da música popular brasileira com os Álbuns Alucinação (1976), Coração
selvagem (1977), Todos os sentidos (1978) e Era uma vez um homem e seu
temo/Medo de avião (1979).
Exímio letrista, Belchior deu vazão, em sua extraordinária
obra, as questões da realidade social, em particular, a grande diferença de
desenvolvimento econômico e cultural entre as regiões do país e todas as suas
consequências. A condição de retirante é uma tônica em sua poética, “pois o que
pesa no norte, pela lei da gravidade. Disso Newton já sabia! Cai no sul, grande
cidade...”. Uma mensagem metafórica sobre a desesperada fuga da gravidade das
condições de existência da população miserável do nordeste, sobretudo, do
secular atraso das cidades do interior, ainda submetidas a um agrarismo
medieval, “os pés cansados e feridos de andar légua tirana”.
Outro tema recorrente em sua obra é o pensamento filosófico,
com os dilemas relacionados à própria existência, com a liberdade, a opressão,
o medo, a morte, a sensibilidade, os conflitos geracionais, o por vir e etc. O
discurso libertário nas suas canções, “saia do meu caminho eu prefiro andar
sozinho deixem que eu decida a minha vida, não preciso que me digam de que lado
nasce o sol...” e consequente a crítica a toda forma repressão, em plena
ditadura militar, fez com que Belchior fosse muitas vezes censurado. Por outro seu
viés anarquista, antipartidário que o acompanhou desde a época da universidade,
sem uma vinculação ou aproximação com nenhuma das organizações políticas de
esquerda que combatiam a ditadura, o garantiu uma espécie de certo salvo
conduta, não sofrendo nenhuma ameaça direta de exílio ou prisão. Aliás essa foi
uma marca característica de toda a leva do Pessoal do Ceará, diferente de
vários artísticas de outros estados que foram brutalmente reprimidos, sendo
detidos, presos, torturados e exilados.
No bojo de tudo isso entra também um forte ranço que
Belchior e o Pessoal do Ceará, que entre si era bastante conflitante, reservado
em relação aos artistas do sudeste, sobretudo RJ/SP, um atitude reativa diante
das diferenças e desigualdades regionais que resultava numa postura de negação
de um aproximação cultural e política. Até mesmo os artistas do nordeste como
os da Bahia e o movimento tropicalista, que não tinham esse pé atrás, pelo
contrário buscavam uma com aproximação em vários terrenos com que fazia parte
da cena cultural de região sudeste, era criticado. Além de tecer críticas a
Gilberto Gil, Belchior tinha como alvo predileto outro baiano, Caetano Veloso,
com estabeleceu um intenso “diálogo artístico” se contrapondo ao que chamava de
poesia pura ou a hedonismo presente em sua obra, “um antigo compositor baiano
me dizia tudo é divino, tudo é maravilhoso” e “mas eu sei que tudo é permitido”
citações em referência às canções de Caetano “Divino maravilhoso” e “É proibido
proibir”. Incrivelmente o único do Pessoal do Ceará a romper esse o cerco
rançoso foi Raimundo Fagner que estabeleceu no início da década de 1980 uma
aproximação cultural, política e uma parceria artística com Chico Buarque…
Desgraçadamente, hoje Fagner se tornou uma figura patética e reacionária, um
entusiasta do justiceiro Moro e apoiador do fascista Bolsonaro.
Como o processo de retrocesso cultural imposto pela grande,
despejando o lixo musical para consumo em larga escala, Belchior com sua arte
popular refinado caiu no ostracismo e em meados dos anos década passados tomou
uma atitude inusitada, resolveu sumir com sua atual mulher, entrando numa
espécie de autoexílio, sem deixar rastro e contrato com as pessoas mais
próximas como os próprios filhos. Terminou seus últimos dias morando de favor
em casa cedida por amigo radialista na cidade do interior gaúcho. Essa passagem
final da vida de Belchior ainda está envolto de mistério, sobretudo, a respeito
dos reais motivos que o levaram a essa decisão. Certamente não há um fator
isolados, mas a conjunção de vários como a sua resposta a um período de tão
difícil e tanta insensibilidade que para um artista do quilate fosse
insuportável vivenciar passivamente, repetindo de certa forma como destacou o
autor do livro “Apenas um rapaz Latino-americano” Jotabê Medeiros, a
experiência de Rimbaud do renomado poeta simbolista francês, um dos preferidos
de Belchior, que abandonou a glamour, o status e o conforto de morar na França
e se enfiou no Norte da África e levar uma vida pacata para comerciante de armas
e café. Coincidência ou não Rimbaud em seu poema “Canção da torre mais alta”
diz “por delicadeza perdi minha vida”, Belchior por sua cita essa passagem na
canção “Os profissionais” acrescentando a palavra também, “por delicadeza
também perdi minha vida”. Outro fator, possivelmente o mais forte, a ter levado
a esse desfecho, foi a personagem Edna Prometheu, sua última com quem embarcou
ele embarcou em sua última aventura. As pessoas que tiveram contato com
Belchior nesse período relatam que Edna exercia um forte domínio sobre ele, a
ponta de perceberem nele dois comportamentos distintos, um mais ativo e animado
cheio de planos, sem a presença dela, e outro passivo, contido e ensimesmado
perante a mesma. Dessa forma realizou uma ação devastadora de um verdadeiro
controle da alma, minando o potencial de vida, levando-o processo destrutivo
que culminou com sua morte. Contudo o poder de sua genial obra, o alcance de
seus versos instigantes e certeiros tornaram esse Rapaz Latino-americano
imortal na mente de muitas gerações.
Acabamos de perder Beth Carvalho e passados dois anos da
morte de Belchior reafirmamos que ambos estão presentes e são exemplos de resistência
ativa cultural. Os dois no final da vida presenciaram o profundo retrocesso
ideológico e cultural da humanidade, cada vez mais dominada pela idiotização da
internet (as famigeradas e controladas redes sociais), pelos meios de
comunicação de massa e a opinião pública a serviço da contrarrevolução
imperialista nos países semicoloniais como o Brasil. Assim, qualquer elemento
de resistência cultural, mesmo que não esteja em voga na mídia, deve ser
destruído, por ser considerado “velho” e contestador da estupidificação das
mentes da juventude, cujas letras e poesia da obra de Belchior e Beth tratam da
inconformidade e de um claro engajamento musical voltado a um projeto
estético-político contracultural rechaçado pela ideologia dominante. A ruptura
com a “inquestionalidade” e com a cultura do óbvio não mais interessa à classe
dominante, o que importa acima de tudo é ser “moderno e atualizado”, em conformidade
ao que impõe goela abaixo a indústria cultural de massas voltada exclusivamente
para o mercado de consumo do “novo” e do politicamente correto, o que implica
inexistência de espaço para a crítica mais ácida aos costumes e
idiossincrasias. Muitos artistas consagrados, exponenciais como Chico Buarque,
já se renderam covarde e mediocremente a esta situação, declinando
conscientemente em se constituir em um polo revolucionário que faça germinar
qualquer semente de resistência cultural no país, vergando-se às imposições da
“voz do dono”. Desta forma, os detentores da propriedade privada dos meios de
comunicação em associação com o imperialismo tratam de destruir os últimos
resquícios de resistência cultural ainda existentes para impor os “novos”
valores ideológicos extremamente conservadores e belicosos a fim de eliminar o
“velho” da sociedade e o que resta da boa música brasileira para logo impor
padrões de consumo descartáveis e de baixa qualidade artística. O grande
depositário da cultura de resistência político-cultural deve ser o
proletariado, organizado desde seus locais de moradia, estudo e trabalho de
forma que possa enfrentar com sua ação direta os ditames da burguesia, a
política do “consenso” e o capital financeiro internacional que é o grande beneficiário
da idiotização principalmente da juventude. Somente a classe operária dirigida
por um partido comunista pode ter em suas mãos o futuro e um horizonte cultural
pleno de satisfação e júbilo através da destruição revolucionária e violenta do
atual modo de produção e, sobre suas cinzas, erguer as bases de uma nova
sociedade!